07.07.2020

Racismo e novo coronavírus: armas mortíferas no Brasil

Ambos são difíceis de serem combatidos em um quadro de desigualdades, de desgoverno, de extrema direita e de ascensão dos ideais fascistas. Podem até indignar, mas ainda não retiraram o Brasil da inércia racial

 

 

Ambos são difíceis de serem combatidos em um quadro de desigualdades, de desgoverno, de extrema direita e de ascensão dos ideais fascistas. Podem até indignar, mas ainda não retiraram o Brasil da inércia racial 

 

Um olhar para a população em tempos de pandemia revela a alta taxa de letalidade que recai sobre os pobres e, com maior contundência, sobre as pessoas negras (pretos e pardos) e pobres. Essa realidade não pode ser compreendida como uma simples coincidência da relação entre pobreza e raça. Ela é fruto de uma perversidade histórica e estrutural ativamente produzida que, no contexto de exacerbação do neoliberalismo e da crise sanitária, revela a imbricação entre raça, pobreza, saúde pública e Estado. 

Diversas organizações do Movimento Negro denunciam o descompromisso do Estado, dos órgãos de saúde e dos veículos da grande mídia em relação aos efeitos da pandemia do novo coronavírus sobre a população negra, e ajudam a comunidade negra a compreender os seus direitos em tempos de crise sanitária. Um grupo de 150 entidades representativas do movimento negro e de periferias do Brasil que compõem a Coalizão Negra por Direitos enviou uma carta ao ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, pedindo informações a respeito dos dados sobre etnia, raça, gênero e território de pessoas infectadas pelo novo coronavírus e mortas em decorrência da covid-19. Essa ação resultou na publicização oficial dos primeiros dados com recorte racial sobre a doença. Porém, os descaminhos e o autoritarismo do governo federal, que desconsidera a trágica situação da saúde pública brasileira levaram ao abandono da socialização de tais dados. Atualmente, se alguém quiser ter essas informações terá que ir direto aos Boletins Epidemiológicos e interpretar os dados. 

Negras e negros estão entre o público mais exposto ao novo coronavírus devido a sua condição de pobreza, de desemprego, de trabalho informal, de residência em regiões periféricas, vilas e favelas sem saneamento básico, de precariedade de postos de trabalho e moradia. Eles também têm maior necessidade do uso dos serviços do SUS (Sistema Único de Saúde). Essa situação possui antecedentes históricos. Ela é consequência do racismo, das heranças colonialistas que privilegiam seus herdeiros em detrimentos de pessoas negras até hoje. 

Também é a população negra e pobre aquela que apresenta maior dificuldade de acesso às medidas sanitárias, às informações adequadas, aos recursos financeiros para a compra de produtos de higienização, de garantia de uma vida saudável, com alimentação nutritiva que possa ajudá-la a adquirir imunidade não só à covid-19, mas também a outras doenças. 

Como bem apontou Pedro Martins, em texto para a Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), as doenças não são entidades democráticas. Diante da atual pandemia, a população negra, em sua diversidade, também é considerada como grupo de risco, obviamente com gradações internas, variando tanto por comorbidades que atingem negras e negros em maior número — caso da hipertensão e da diabetes e, principalmente, da anemia falciforme — ou mesmo pela letalidade social, motivada por questões históricas, políticas e sociais estruturantes de nossa sociedade. 

AS MANIFESTAÇÕES ANTIRRACISTAS E ANTIFASCISTAS, NOS EUA E NO MUNDO, QUE MOSTRARAM SER POSSÍVEL TODOS NOS UNIRMOS CONTRA O RACISMO FICAM COMO EXEMPLO AO BRASIL E A SUA INÉRCIA DIANTE DE UM QUADRO SEMELHANTE COM O QUAL CONVIVEMOS DESDE A ESCRAVIDÃO 

As negras e os negros encontram-se, em sua grande maioria, entre os moradores e as moradoras das vilas, favelas e periferias, no contingente cada vez maior da população de rua, entre os desempregados e assalariados em funções como limpeza urbana, auxiliares de enfermagem, maqueiros, motoristas de ambulâncias, faxineiras, coveiros, porteiros de prédios e condomínios, prestadores de serviços, motoboys, motoristas de aplicativos, população carcerária, jovens em conflito com a lei, trabalhadoras domésticas e diaristas. São lugares ocupacionais e sociais construídos no contexto das desigualdades, marcados pelo passado escravista, pela ausência de políticas para inclusão da população negra na sociedade após a abolição da escravatura e pela exploração capitalista. 

O fato de serem as mulheres negras a maioria dentre a categoria profissional das domésticas, bem como de profissões como cabeleireiras, manicures, cuidadoras de idosos, babás, faxineiras e das pessoas que atuam no trabalho informal, exige que se lance sobre elas um olhar especial na busca da garantia do seu direito à vida digna e ao trabalho. 

Se o auxílio emergencial é uma política necessária para todos e todas diretamente afetados pela pandemia, as mulheres negras demandam ainda mais atenção do Estado. Em tempos de isolamento social algumas dessas mulheres não têm nenhum rendimento. Muitos empregadores e empregadoras as dispensam e não adotam a medida justa de garantir-lhes o direito ao isolamento social juntamente com o seu salário. Trata-se de uma situação dramática para essas mulheres e suas famílias. 

Os indígenas e quilombolas fazem parte dos grupos étnico-raciais com um histórico de lutas e direitos específicos. Na atual crise sanitária, essas comunidades têm sofrido muito. Desde as eleições de 2018, vem sendo implementada uma sistemática destruição das políticas a elas destinadas. Trata-se de um genocídio explícito que a sociedade brasileira assiste inerte. Essa inércia é a expressão do colonialismo, do racismo e da branquitude. 

Se o isolamento social e as medidas de higienização são as duas principais apostas da OMS (Organização Mundial da Saúde) no processo de cuidado para a não contaminação pelo coronavírus até que se produza a vacina, quando refletimos sobre a junção entre pobreza, trabalho precário, desemprego, trabalho informal, trabalho doméstico, encarceramento em massa — frutos da imbricação nefasta entre capitalismo e racismo — compreenderemos a dificuldade (e a impossibilidade) de uma grande parte dos pobres e das pessoas negras e pobres em atender as orientações da OMS. 

Parece ser impossível não enxergar a principal cor do maior índice de letalidade da pandemia do novo coronavírus. Mas a invisibilização racial provocada pelo racismo estrutural e pelo mito da democracia racial, juntamente com o egoísmo das elites econômicas e políticas e a lógica privada do capitalismo aguçam ainda mais a naturalização da desigualdade racial e socioeconômica nesses tempos. 

Mas se falta uma ação incisiva do Estado, brotam trabalhos e ações comunitárias e solidárias organizadas pelos próprios moradores das vilas, favelas e periferias. Contando com a parceria e solidariedade das entidades negras, movimentos sociais os mais diversos, sindicatos, igrejas, universidades, ONGs, voluntários, entre outros, o cuidado, a alimentação e a orientação necessários em tempos de pandemia acontecem. Trazem um pouco de segurança e ânimo. Salvam vidas. 

A pandemia revela, também, que precisamos cada vez mais de um SUS forte e da efetivação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. E necessitamos da maior presença do Estado de Direito na garantia da vida da população brasileira, principalmente dos setores mais pobres e, dentre esses, os negros. 

A postura de descaso com a morte e o sofrimento da população negra é uma ação cotidiana da necropolítica e pode ser vista não só no Brasil, mas, também, em outros lugares do mundo. 

Os EUA, cujo governo e posturas de Donald Trump inspiram o atual presidente brasileiro, são um exemplo. A situação de racismo e desigualdade racial vivida pelos negros e negras estadunidenses virou notícia internacional devido ao assassinato a sangue frio, em Minneapolis, na quinta-feira, 28 de maio de 2020, do segurança negro George Floyd por um policial branco. Filmado e divulgado internacionalmente, o crime desencadeou uma série de protestos antirracistas congregando negros, brancos e latinos, assim como análises e discussões na mídia nacional e internacional sobre o ocorrido. 

Os negros estadunidenses e brasileiros, apesar de viverem em contextos muito distintos, partilham de uma história de escravização, luta por libertação e vivência do racismo estrutural. O descaso do Estado com a saúde pública é também um ponto comum vivido pela população negra e pobre de ambos os países, resultando em altas taxas de letalidade por covid-19 nesses tempos de pandemia. 

No Brasil, no mesmo momento dos protestos antirracistas nos EUA, começam a se desenhar atos de rua das torcidas organizadas, dos setores progressistas, de grupos populares e de movimentos sociais diante dos horrores da política de extrema direita implementada a partir de 2019 e os ataques fascistas à democracia. 

Nos EUA, embora os protestos tenham também uma bandeira antifascista, é o antirracismo o carro-chefe das mobilizações e foi a população negra a primeira a ganhar as ruas, revidando com rigidez a opressão racial sofrida, seguida dos brancos e latinos, o que causou espanto aos setores conservadores e à extrema direita naquele país e no mundo. 

No Brasil, embora todas as estatísticas apontem para o genocídio da juventude negra, não provocam espanto atos bárbaros como a morte do adolescente negro João Pedro, no dia 18 de maio de 2020, assassinado com um tiro pelas costas durante uma operação da Polícia Civil e da Polícia Federal no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo (RJ); e a morte de Cláudia Silva Ferreira, mulher negra, morta por um dos disparos da polícia, no Morro da Cegonha, em Madureira, no subúrbio do Rio, e que teve o corpo arrastado por 350 metros por um carro da PM, no dia 16 de março de 2014. São muitos casos alarmantes de assassinatos de negras e negros, de extermínio pela polícia, pelas milícias, pelo tráfico. 

Parte da branquitude brasileira assiste horrorizada a realidade do racismo estadunidense explicitado pela mídia, porém, há décadas, o Movimento Negro denuncia o racismo brasileiro e a sua relação com a violência do Estado. Contudo, a sua voz tem sido interpretada, de maneira perversa e equivocada, por setores tanto da esquerda quanto da direita, como tentativa de dividir racialmente a República. 

No campo progressista, sempre que militantes negros denunciam o racismo, ouvem como resposta a enfadonha afirmação de que negros e negras são discriminados porque são pobres e não porque são negros. O eterno falso problema da questão raça e classe. A vida e a prática de um grupo restrito de pessoas negras brasileiras que alcançaram altos patamares econômicos, educacionais e/ou sociais atesta o quanto a questão da classe se torna secundária quando o racismo opera. 

As manifestações antirracistas e antifascistas, nos EUA e no mundo, que mostraram ser possível todos nos unirmos contra o racismo ficam como exemplo ao Brasil e a sua inércia diante de um quadro semelhante ao com que convivemos desde a escravidão. Quem sabe esse constrangimento traga alguma inflexão política na letargia dos setores mais progressistas diante desse histórico e perverso fenômeno? Digo isso porque da extrema direita nada pode ser esperado. 

Porém, estamos em tempos de pandemia do novo coronavírus no mundo. E continua a expansão exacerbada de casos de covid-19 no Brasil, com a ausência de condução do Ministério da Saúde, a estratégia covarde do governo federal de minimizar a crise sanitária e de cercear a divulgação dos dados nacionais sobre a pandemia. Tudo isso se torna um terreno propício para o aumento das taxas de letalidade da população pobre, negra, indígena e quilombola no país. 

Acompanhada da invenção de uma flexibilização vertical, cinicamente pregada pelo presidente e seus asseclas, reivindicada pelo mercado e por uma parte da população que precisa trabalhar para sobreviver e teme, ao mesmo tempo, o desemprego, a fome e a morte, as manifestações de rua antirracistas, inspiradas pelo lema “vida negras importam”, no Brasil, impulsionam as pessoas a saírem às ruas para protestar contra o fascismo, o racismo e pela retomada democrática. 

Do ponto de vista da saúde pública, a aglomeração nas ruas, por mais justa que seja a bandeira de luta empunhada, poderá piorar ainda mais o quadro, levando o país a uma crise sanitária e econômica sem precedentes no mundo. No contexto de uma desigualdade social e racial intensas, de desgoverno, da insegurança, de aumento do desemprego e da pobreza, os justos atos de rua podem levar a uma maior contaminação. Nesse contexto, negros e negras pobres, certamente, serão os mais afetados. Diferentemente da classe média, majoritariamente branca, que também participa dos protestos e têm planos de saúde privados e condições de vida e sanitária dignas, as pessoas negras voltam para as periferias, vilas e favelas e disputam espaço no tratamento do SUS. 

Trata-se do desafio de zelar pela vida e, ao mesmo tempo, agir politicamente diante da perversa imbricação entre pandemia, racismo, fascismo e necropolítica. Somos desafiados a mobilizar a nossa justa ira, nos dizeres de Paulo Freire, e, ao mesmo tempo, cuidar uns dos outros. 

Coronavírus e racismo são difíceis de serem combatidos em um quadro de desigualdades, de desgoverno, de extrema direita e de ascensão dos ideais fascistas. Ambos são armas mortíferas. Podem até indignar, mas ainda não retiraram o Brasil da inércia racial. 

Como diz o rapper Emicida “porque um corpo preto morto é tipo os hit das parada, todo mundo vê, mas essa porra não diz nada”. 

Nilma Lino Gomes é professora titular emérita da Faculdade de Educação da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Foi reitora da Unilab (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira) e ministra das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos no governo da presidenta Dilma Rousseff.