02.12.2021

Trabalho remoto no Brasil durante a pandemia COVID-19: realidades, experiências e desafios

Estudo analisa a regulação no Brasil antes e durante a pandemia, o perfil dos trabalhadores e tipos de atividades, que também podem significar novas fronteiras de desigualdade.

                                                                                                                   Texto publicado originalmente em Global Labour Column. 

O contexto da pandemia se tornou um laboratório para o teletrabalho. Para a maioria dos trabalhadores dos setores bancário, de tecnologia da informação e justiça (entre outros) que estavam em condições de passar para o teletrabalho, os arranjos de trabalho mudaram rapidamente e sem opções de negociação coletiva, o que significava que os trabalhadores eram obrigados a assumir os encargos e custos de tais mudanças.

No início, as empresas resistiram à introdução do trabalho remoto por razões culturais. Quando o aceitaram, porém, conseguiram reduzir os custos operacionais e aumentar a produtividade. Portanto, muitas delas anunciaram sua intenção de manter este modelo após a pandemia. No Brasil, o número de teletrabalhadores aumentou de 4,6 milhões em 2019 para 8,2 milhões em 2020. Como resultado, um enorme contingente de trabalhadores transferiu suas atividades profissionais para a sala de estar ou para outra sala de sua casa.

Vários projetos de pesquisa no Brasil revelaram profundas mudanças nas condições de trabalho devido à transferência das atividades laborais para as casas das pessoas: espaço e equipamentos insuficientes, multitarefas e falta de apoio, aumento do horário de trabalho diário e dias de trabalho sem remuneração salarial, entre outros. As dificuldades de separar o horário de trabalho do tempo de descanso, além dos custos que os trabalhadores estão assumindo, estão entre os problemas mais importantes deste formato de trabalho. Condições de trabalho mais convenientes, incluindo a cobertura e o controle do horário de trabalho, só estavam disponíveis para categorias de trabalho com forte presença sindical e acesso à negociação coletiva.

As condições reais de teletrabalho levaram a um aumento das queixas ao Ministério Público do Trabalho. Em 2018 e 2019, as queixas na área de trabalho remoto eram basicamente inexistentes: 39 reclamações foram apresentadas em 2019. Isto subiu para 1 679 em 2020, um aumento de 4 205%. As queixas mudaram com o tempo: inicialmente, as queixas eram dirigidas contra empregadores que se recusavam a mudar seu pessoal para um emprego virtual, mesmo quando tais mudanças eram viáveis, quando um trabalhador pertencia a um grupo de risco ou convivia com pessoas que pertenciam a tais grupos. No decorrer da pandemia, no entanto, as reclamações começaram a se concentrar em outros problemas, tais como longas horas de trabalho, carga de trabalho excessiva e a falta de infraestrutura de trabalho adequada.

O teletrabalho também se tornou um novo marcador de desigualdade, uma vez que certas tarefas não podem ser feitas remotamente. Trabalhos que exigem o uso de ferramentas de TI em setores de serviços, como educação, saúde, sistema financeiro e comunicação, entre outros, também poderiam ser realizados sob condições de teletrabalho. Entretanto, as chamadas atividades essenciais, tais como transporte, logística e comércio têm que ser feitas pessoalmente. Além disso, houve diferenças em relação aos perfis dos trabalhadores. Segundo a Pesquisa Nacional de Domicílios (PNAD-Covid-19), o trabalho remoto era feito principalmente por mulheres (56,1%), pessoas que eram brancas (65,6%), tinham concluído o ensino superior (74,6%) e tinham de 30 a 39 anos (31,8%); 63,9% trabalhavam no setor privado e 36,1% no setor público (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE na sigla em português). As características dos trabalhadores à distância são, portanto, os altos níveis de escolaridade, brancos e as chamadas profissões de classe média (Bridi, 2020).

Forte disrupção

Uma pesquisa realizada em maio de 2020 pelo Grupo de Pesquisa sobre Trabalho e Sociedade (GETS) e pela Rede Interdisciplinar de Pesquisa e Monitoramento da Reforma do Trabalho (REMIR), incluindo entrevistas com 906 pessoas, mostrou que, devido à falta de demanda de mão-de-obra, os trabalhadores autônomos e informais (serviços pessoais, terapeutas, turismo etc.) estavam entre os mais afetados pela pandemia. A pesquisa também destacou a assimetria entre mulheres e homens no que diz respeito ao cuidado de crianças e ao trabalho doméstico. As mulheres mencionaram "dificuldades de concentração e interrupções durante sua atividade profissional em casa". Os homens, por sua vez, mencionaram o termo "dificuldade" em suas declarações sobre a falta de contato com os colegas, enquanto as mulheres se referiram ao cuidado das crianças e do lar (Bridi, Bohler e Zanoni, 2020: 39). Os entrevistados incluíram acima de tudo professores, pessoal judicial e da previdência social, gerentes públicos, advogados, pessoal administrativo, analistas (em diferentes áreas) e consultores - atividades que permitem o trabalho remoto ou baseado em TI.

Os dados disponíveis levam à conclusão de que as condições de trabalho foram gravemente perturbadas devido à invasão do espaço privado pelo trabalho, a inadequação de tais espaços, condições de trabalho, multitarefas profissionais e domésticas, e novos processos de aprendizagem juntamente com atividades laborais. Os professores, por exemplo, tiveram que aprender como gravar suas aulas, trabalhar com imagens e sons, publicar tarefas e fazer monitoramento e avaliação remota de seus alunos, enquanto trabalhavam mais horas sem remuneração extra. O horário de trabalho diário e o número de dias trabalhados por semana aumentaram, enquanto a porcentagem de pessoas trabalhando mais de oito horas por dia saltou de 16,11% antes da pandemia para 34,44%. Cerca de 18% dos entrevistados indicaram que trabalhavam seis ou sete dias por semana durante a pandemia; e 25,5% de 526 pessoas (58,06%) que haviam mencionado a existência de metas de produtividade em seus empregos indicaram que tais metas haviam sido aumentadas.

As dificuldades e problemas identificados incluíram o isolamento dos colegas, o aumento das interrupções, a separação da vida profissional e familiar, horários de trabalho mais longos e custos que tiveram que ser assumidos pelos trabalhadores. Como uma mulher assinalou, o trabalho é "cansativo porque às vezes as exigências vão além de oito horas por dia (às vezes eu tenho que trabalhar em turnos noturnos e durante os fins de semana), o que é exaustivo" (Bridi et al, 2020). Isto leva a "um cansaço mental crescente devido à dificuldade de separar as horas de trabalho do tempo de descanso".

Equipamento inadequado

Outro aspecto que foi destacado pela pesquisa refere-se a problemas relacionados a espaço e móveis inadequados para o trabalho domiciliar, aumento de custos com equipamentos de TI, estresse relacionado a tarefas, a gama de atividades que precisam ser cobertas e a falta de apoio dos colegas. Apenas 30,79% declararam que suas condições de trabalho eram excelentes em relação a uma mesa, cadeiras e um ambiente de trabalho apropriado. Outros descreveram suas condições como razoáveis (57,96%), porque tinham uma mesa e uma cadeira, ou muito ruins (12,14%), pois não possuíam todos esses elementos.

Estes resultados coincidem com os de outra pesquisa realizada em 2021 pela Associação Brasileira de Estudos do Trabalho (ABET), junto com a Central Sindical Unida (CUT) de São Paulo e Rio de Janeiro e o Arquivo de História do Trabalho do Rio de Janeiro (AMORJ). O perfil dos trabalhadores coincide nas duas pesquisas, exceto pelo fato de que na pesquisa de 2021 a maioria dos entrevistados tinha uma relação de trabalho formal, baseada em contrato, seguindo o critério de que os trabalhadores deveriam ter relações de trabalho formais e fazer parte da base sindical da CUT. Outras observações se referiam às desigualdades de gênero: a maioria dos homens (64%) respondeu que o trabalho remoto não criava nenhuma dificuldade em relação ao seu impacto nas tarefas domésticas. Por outro lado, as dificuldades mencionadas incluíam o ambiente de trabalho e mobiliário inadequado, um aumento nos custos relacionados ao equipamento e problemas de comunicação com colegas e supervisores. O estudo revelou, por exemplo, que os equipamentos (mesa, cadeira, conexão à Internet, fones de ouvido, telefones celulares, mouse e computador) eram de propriedade dos trabalhadores (mais de 60% dos entrevistados), com exceção dos programas de software, que eram, para a maioria (pouco mais de 50%), propriedade das empresas.

Ambas as pesquisas também revelam as vantagens que já foram mencionadas, tais como horários flexíveis de trabalho, a possibilidade de evitar o tráfego e estar perto da família. Embora realizadas em diferentes momentos, ambas as pesquisas mostram alguma convergência e um modelo de trabalho domiciliar no qual os direitos trabalhistas são mantidos em níveis baixos e as negociações com os sindicatos são em grande parte inexistentes. Por sua vez, a regulamentação através da negociação coletiva beneficiou, sobretudo, os trabalhadores de empresas de economia mista, empresas de energia elétrica, Petrobras e bancos públicos, entre outros, e permitiu melhores condições de trabalho. Para este fim, a ação sindical desempenhou um papel crucial.

Historicamente, o trabalho era uma das esferas públicas mais importantes, onde os trabalhadores podiam se socializar. O trabalho remoto, portanto, envolve uma regressão para a esfera privada doméstica, onde o trabalho é individualizado e sua carga se torna invisível. Como mostram as pesquisas discutidas acima, e seguindo o trabalho de Machado e Bridi (2021), os trabalhadores têm que lidar com três grandes desafios. 1) Controle do horário de trabalho. A desnormalização da jornada de trabalho que pode ser observada reverte as conquistas da classe trabalhadora a este respeito. Dependendo do tipo de regulamentação de cada país, o trabalho remoto legitima, de uma vez por todas, a invasão da privacidade dos trabalhadores pelas empresas e a expansão de diferentes formas de controle que gradualmente envolvem suas vidas. 2) O risco de diluição dos direitos. Os direitos e garantias alcançados pelos trabalhadores são concebidos como parte de uma lógica de trabalho baseada na empresa, com horários de trabalho definidos e subordinação hierárquica. O trabalho se torna ilimitado sem regulamentação. 3) Ação coletiva e sindicalização. O teletrabalho resulta em trabalhadores cada vez mais dispersos e fragmentados, e levanta a questão de como as condições de trabalho em casa podem ser reguladas e supervisionadas. Como é possível mobilizar e organizar os interesses comuns dos trabalhadores, quando eles estão dispersos em casa?

>> Acesse o "Estudo sobre a regulação do teletrabalho no Brasil" na íntegra, aqui