Em entrevista a Sergio Lirio, Celso Amorim analisa a política externa do Brasil.
Entrevista concedida a Sergio Lirio, em 12 de agosto de 2022.
Entusiasta da integração regional e de um mundo multipolar, Celso Amorim acredita que só uma ação conjunta, orquestrada, garantirá independência geopolítica à América Latina. “Não podemos escolher um lado ou outro” na disputa entre China e Estados Unidos, afirma.
Segundo ele, a consciência dos benefícios de uma unidade aumentou na região e, apesar de o cenário ter se alterado profundamente nos últimos 15 anos, não está claro o retorno à divisão do planeta em dois blocos como nos tempos da Guerra Fria. Na entrevista, o diplomata também avalia a política externa do governo Biden, os rumos da invasão da Ucrânia e os riscos de uma guerra nuclear.
Quanto ao acordo Mercosul-União Europeia, defende a revisão de pontos do tratado e prega cautela nas discussões. “Se há alguma experiência que acumulei em mesas de negociação, é esta: a pior coisa é a pressa”, diz. “É como o goleiro que salta antes do chute. Pode até pegar a bola, mas a chance fica bem menor”.
Como o senhor interpreta a visita da deputada Nancy Pelosi, presidente da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, à Taiwan? Qual era o objetivo dessa viagem?
Olha, tudo isso hoje em dia é muito delicado. Estamos aqui às vésperas da eleição no Brasil e imputar razões, motivações, ao comportamento de lideranças de outros países é um pouco complexo. Eu diria, no entanto, que, independentemente do que se pode achar da relação de Taiwan com a China, a viagem teve um objetivo eleitoral. Os democratas lutam para não perder a maioria no Congresso nas eleições de novembro. Muita gente nos Estados Unidos ainda tem a visão de que cabe ao país o papel de guardião dos direitos humanos e da democracia mundo afora. Nesse contexto, há uma rivalidade quase hostil com a China, vista como principal adversário e, algumas vezes, como inimiga dos EUA. Por outro lado, a visita de Nancy Pelosi contraria 40, 50 anos de política externa norte-americana em relação a Pequim, pois toda a aproximação na época do Richard Nixon e do Henry Kissinger era baseada no conceito de uma só China. Os Estados Unidos, de um modo geral, respeitaram isso, sempre foram cuidadosos nas relações com Taiwan para não ferir esse princípio básico. Houve altos e baixos, claro, mas essa viagem da deputada se deu em um contexto geopolítico delicado. Há dois aspectos muito importantes a serem levados em conta.
Quais?
Um, digamos, é estrutural: a economia chinesa vai se tornar a maior do mundo e isso cria uma tensão evidente. Como você sabe, eu comentei em outras entrevistas dadas a você, há um livro do analista Graham Allison chamado “Destinados à Guerra”, no qual ele explora o conceito que ficou conhecido como a “Armadilha de Tucídides". É uma referência à Guerra do Peloponeso: segundo Tucídides, historiador grego, o crescimento de Atenas levou Esparta à batalha. Há, digamos, essa tendência e ela deve ser tratada com muita habilidade para que, em nenhum momento, se caia nessa armadilha, pois se trata, neste caso, de potências nucleares. O outro aspecto é a invasão da Ucrânia, cujo antecedente é a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte em direção ao Oriente. É outra fonte de tensão. Autoridades dos Estados Unidos verbalizaram que a resposta à invasão russa era também uma advertência à China. O mundo ainda não saiu completamente da pandemia e precisa desesperadamente de cooperação, mas a visita de Pelosi a Taiwan e a reação chinesa, não me cabe julgar se justa ou exagerada, dificultam essa cooperação.
O mundo caminha para se dividir em dois blocos como no tempo da Guerra Fria ou ainda há tempo para recuperar a ideia de uma geopolítica multipolar?
Essas classificações são sempre arbitrárias. O mundo nunca foi totalmente bipolar durante a época da Guerra Fria. Havia o conflito sino-soviético, por exemplo, e no lado Ocidental, Charles de Gaulle procurava mais independência dos Estados Unidos. Dito isso, nesse quadro de simplificações, aparentemente ainda caminhamos para um mundo mais multipolar, com elementos de bipolaridade, pois, do ponto de vista econômico, os EUA e a China são os dois grandes polos, embora a União Europeia tenha muito peso. Do ponto de vista militar, ao contrário, a UE tem menos peso e a Rússia tem uma relevância muito maior. Quando falamos do mundo multipolar, em parte é uma constatação e em parte um desejo. Nada é um dado absoluto. A América Latina precisa se unir mais. A região passa neste momento por grandes transformações: Chile, Colômbia, Bolívia, que recuperou um modelo de desenvolvimento, a Argentina, apesar da crise, o México, com uma política muito mais independente. Sem nenhum ufanismo, o país que faz, no entanto, a diferença é o Brasil. Como costuma lembrar o meu amigo Paulo Nogueira Batista Jr., somos uma das pouquíssimas nações a figurar em todas as listas dos “dez mais”: dez maiores territórios, dez maiores populações, dez maiores economias – não neste momento, mas voltaremos a ser. Isso por si só nos confere uma influência muito grande no subcontinente, sem falar na nossa histórica relação com a África, que nos dá uma enorme capacidade de mobilização. A decisão do Brasil de buscar uma maior integração sul-americana e latino-americana, como aconteceu no governo Lula e, espero, voltará a ocorrer, contribui para essa multipolaridade. O país foi ponta-de-lança: ajudou na formação dos Brics e do Ibas (Índia, Brasil, África do Sul). Há quem fale hoje em uma nova configuração, com a inclusão da Indonésia, Argentina. O Brasil, de qualquer maneira, precisa estar presente. O México tem hoje um governo extremamente corajoso, mas enfrenta a óbvia limitação da proximidade com os Estados Unidos. A multipolaridade, ao mesmo tempo, é uma tendência e ao mesmo tempo é um objetivo.
Quais seriam as novas bases do posicionamento do Brasil e da América Latina diante do aprofundamento das tensões entre EUA e China? Vale lembrar que no governo Bolsonaro, o chanceler Ernesto Araújo propunha um “eixo cristão” para combater a expansão chinesa. De qualquer forma, essa disputa tomou outra dimensão e não é a mesma de 15 anos atrás, quando o senhor era o ministro das Relações Exteriores do governo Lula.
Primeiro, não dá para levar em conta o que se passou no governo Bolsonaro, é como se o Brasil estivesse bêbado. Não há direção, é imprevisível. Com o Ernesto Araújo, o país queria ser “pária” e conseguiu. O Brasil é evitado, até por governos de centro-direita do mundo, deixou de ser uma boa companhia. Vamos manter a esperança e a confiança de que voltaremos à normalidade. Quando fui chanceler, defendi e pratiquei, sob orientação do presidente Lula, uma política ativa e altiva. Administrações anteriores seguiram os princípios constitucionais de independência, autodeterminação dos povos, direitos humanos, solução pacífica de controvérsias, mas nós fazíamos de uma maneira desassombrada. Tenho certeza de que recuperaremos essas características caso o presidente Lula, na chapa com Geraldo Alckmin, volte a governar. Tenho dificuldade em conceber uma reeleição do Bolsonaro, para mim seria o fim do Brasil como eu entendo. Mas de volta ao ponto central da pergunta. Vai ser delicado, o mundo mudou muito. Obviamente naquela época já havia uma rivalidade entre EUA e Rússia e China, mas não era tão clara, a hegemonia norte-americana era muito forte. O Brasil, e isso se estende aos parceiros da América do Sul e da América Latina, não pode fazer opções, não pode escolher um lado ou outro. Essa postura é indissociável da maior integração regional, que se dá em duas velocidades distintas, pois certas coisas são possíveis em um determinado contexto geográfico e outras não. Em temas como saúde, cooperação espacial, ciência e tecnologia, não há barreiras a uma ampla cooperação entre os países da América Latina e Caribe. Em questões de defesa não é impossível, mas difícil, dada a proximidade geográfica de alguns países com os EUA. É com uma maior integração, mesmo em duas velocidades, que a América Latina terá condições de atuar de forma independente.
Os espaços de atuação, de qualquer forma, estão mais limitados, não? Pensemos nesse alinhamento da Europa e dos EUA após a invasão da Ucrânia.
Com a invasão da Ucrânia pela Rússia, houve uma tendência de maior aproximação da Europa com os Estados Unidos. Tenho consciência de como a guerra mexe com os nervos europeus, por causa dos históricos conflitos com os russos, mas a extensão das sanções é uma coisa tão negativa para o próprio bem-estar dos europeus que me deixa um pouco preocupado com esse alinhamento, no sentido de um automatismo ou quase-automatismo. Isso é muito perigoso. A reunião da Otan em Madri é parte desse quadro tenso. Há - ou parece haver - o propósito de transformar a organização em uma Super-Otan, não mais focada no Atlântico Norte, mas no mundo. De qualquer forma, acho que questões pragmáticas, entre elas a limitação de acesso ao gás natural durante o inverno, tenderão a moldar uma posição mais independente da União Europeia.
Como o senhor mesmo ressaltou, neste momento a Europa parece um posto avançado dos Estados Unidos, sem falar dessa escalada armamentista na UE depois de décadas de orçamentos limitados nessa área.
A escalada armamentista pode espelhar - eu não defendo, obviamente não acho positivo em nenhum lugar do mundo - outro tipo de ambição, uma busca por maior autonomia. Tudo ainda corre em um certo campo especulativo, mas os efeitos práticos da guerra e das sanções estão aí: aumento da inflação, restrições energéticas, crise alimentar... Isso terá efeito não só nas relações com a Rússia, mas também com a China. Os europeus precisam muito da aproximação com os chineses, pois se os russos são provedores de energia e matéria-prima, a China é um grande mercado e um grande investidor. Quando houve uma grande reunião sobre a rota, o cinturão...
...A nova Rota da Seda...
Os nomes variam (risos). Bem, quando teve essa reunião, o primeiro-ministro italiano à época esteve presente, pois o projeto é muito grande e muito forte. Acho muito difícil a Europa se resignar a uma contração econômica intensa, a uma queda dos padrões de bem-estar. Aos poucos, em paralelo, acredito que haverá um esforço na busca por uma solução pacífica na Ucrânia. Claro, depende da vontade da Rússia, que cruzou uma linha que não poderia ter sido cruzada. Houve uso da força, com a agravante do atentado contra a integridade territorial de um Estado. Bem, de volta à pergunta. Você tem razão, hoje em dia a Europa tem um alinhamento muito grande com os EUA, e a Conferência de Madrid foi eloquente nesse sentido, mas acho que isso tende a se dissolver quando os europeus perceberem que precisam tanto dos combustíveis e matérias-primas da Rússia quanto do mercado e dos capitais chineses.
Muitos analistas alertam para uma ameaça nuclear. O senhor concorda? Acha que retornamos aos momentos mais tensos da Guerra Fria, quando fazia sucesso na mídia o tal “Relógio do Fim do Mundo”?
Há um risco real de uso de armas nucleares. Não sou eu quem diz, são analistas sérios, não alarmistas. Toda semana há artigos na Foreign Affairs ou no Project Syndicate a alertar para essa possibilidade caso o conflito na Ucrânia se prolongue demais.
A invasão da Ucrânia, ao contrário da previsão de vários especialistas, se arrasta há mais de cem dias e sem nenhum sinal de negociação. Dá para prever quando e como o conflito termina?
Vejo alguns sinais, de um lado e de outro, de disposição para encontrar uma solução. Agora, talvez, ninguém, de um lado e de outro, se sinta em condições de admitir a busca de uma negociação, pois isso envolve concessões, e é muito difícil para os governantes explicar uma mudança de atitude depois de tudo o que foi dito. A Rússia se declarou ameaçada pela Otan e afirmou que as populações de língua russa na Ucrânia eram vítimas de um genocídio. Do lado ocidental, comparou-se Vladimir Putin a Hitler. Depois dessa escalada, fica mais difícil criar um clima propício para as negociações, mas vai acabar acontecendo. Começa a haver um certo cansaço da guerra. De qualquer maneira, essa separação do mundo entre a Otan e o resto é perigosa. O Brasil e a América Latina não podem fazer uma opção entre essas duas possibilidades, temos de incentivar a cooperação, principalmente por causa de outros desafios: pandemias, aquecimento global, sem falar nas armas atômicas. A sobrevivência da humanidade está ameaçada.
Uma das prioridades continua a ser a reforma do Conselho de Segurança da ONU ou a agenda mudou?
A reforma do Conselho de Segurança é parte da discussão, continua atual, mas está inserida em um debate mais amplo. É necessário modificar a governança global. Há os desafios da mudança climática e da dívida dos países. Uma economista brasileira me disse que 50 nações, quase todas africanas, não conseguem lidar com suas dívidas externas, precisam renegociar. Mas não será possível avançar nesse ponto no atual sistema de cotas do FMI, no qual a Bélgica tem mais votos do que a África do Sul, entende? Precisamos de uma espécie de G20 modificado, mais africano, para tratar dos grandes temas e um Conselho de Segurança também diferente. Não tem cabimento manter o direito de veto, às vezes usado em questões que nada têm a ver com defesa.
Em um evento recente na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, o ex-presidente Lula se disse assustado com a invasão dos produtos chineses no mercado brasileiro. A China é um parceiro importante para o Brasil e a América do Sul, mas os termos atuais não parecem tão vantajosos para os países da região. Como mudar essa relação?
A culpa não é dos chineses, é nossa, por não termos, ao longo de décadas, salvo em curtos períodos, desenvolvido uma política industrial e tecnológica atualizada. No caso do Brasil, temos uma grande responsabilidade e uma enorme oportunidade, um trunfo, nas questões ligadas ao desenvolvimento sustentável. Aproveitar nossa biodiversidade, o fato de nossa matriz energética não ser tão poluente... Se não fosse a China a ocupar espaço, seriam os Estados Unidos. Insisto: precisamos fortalecer a unidade da América do Sul, cada país não pode negociar de forma unilateral, de olho só nas vantagens imediatas e sem levar em conta a perda para o conjunto. Os chineses terão de entender progressivamente que não basta manter um fluxo de comércio, é preciso contribuir para o desenvolvimento tecnológico dos parceiros. Fazer o que ela exige de quem quer ter acesso a seu mercado: investimentos com parcerias. A China tem de contribuir para um desenvolvimento tecnológico mais equilibrado no planeta. Do nosso lado, o caminho é reunir muitos cérebros, de setores variados, para pensar as políticas públicas. O governo Bolsonaro deixou à míngua a ciência e a tecnologia, sem falar no ensino superior. Será preciso um esforço redobrado.
O senhor esperava mais do governo Biden, em especial na política externa?
A gente é sempre mais otimista do que a realidade se revela. Em relação à América Latina, esperava, no mínimo, um retorno à política adotada pelo governo Obama, que manteve relações com Cuba, não vetou a participação da ilha na Cúpula das Américas, e dialogou com a União das Nações Sul-Americanas. Enquanto a direita brasileira dizia que a Unasul era “bolivariana”, o Obama pedia reuniões com o grupo. Nesse ponto, me decepcionei. Também não concordo com essa divisão de mundo entre autocracias e democracias. Seria bom enxergar as coisas de maneira mais razoável, mais pragmática, procurando melhorar os direitos humanos sempre, sem tentar impor, mas persuadir. Por outro lado, a abertura de diálogo com a Venezuela é um avanço em relação ao governo Trump. E tem sido muito importante e não pode deixar de ser reconhecido – embora você possa dizer que é o mínimo, mas nem sempre esse mínimo é cumprido – o fato de os Estados Unidos defenderem de forma inequívoca o respeito ao processo eleitoral no Brasil. No governo Trump, a Casa Branca incentivou o golpe na Bolívia, ameaçava a Venezuela.
Para os padrões norte-americanos, a defesa do processo eleitoral no Brasil foi até enfática, não?
Muito enfática e muito positiva. No Brasil, nunca houve golpe, ao menos depois da Segunda Guerra, sem o apoio das elites econômicas, da mídia e dos Estados Unidos.
O ministro da Economia, Paulo Guedes, disse que a União Europeia “não conta mais” e que o caminho é estreitar as relações com a China. A Europa ainda conta?
Muito. Acho importante buscar um equilíbrio nas relações. Nem o Brasil nem a América do Sul podem simplesmente passar dos braços dos Estados Unidos para os braços da China. A Europa é muito importante no jogo multipolar, não só político, mas econômico. Por isso, um acordo Mercosul-União Europeia não pode simplesmente ser jogado no lixo. Precisa ser revisto, melhorado. Muitos europeus querem mudanças no aspecto climático, então a gente aproveita e propõe alterações nos itens que tratam de política industrial e tecnológica.
Quais pontos precisam ser modificados no acordo Mercosul-União Europeia?
Seria bom, primeiro, fazer uma pausa para reflexão. O que queremos com esse acordo? Não se pode exigir mais investimentos no combate ao aquecimento global, de interesse de todos, e impedir um desenvolvimento tecnológico, a criação de um sistema de compras intergovernamentais que incentive as indústrias locais, sobretudo a expansão de uma tecnologia endógena ou adaptada. Não existe nenhum país do mundo com política industrial sem compras governamentais. A não ser que se pratique algo condenável, como aconteceu no Leste Asiático: a exploração de mão-de-obra barata, sem direitos. Queremos respeitar os padrões trabalhistas e ambientais, mas isso exige pesquisa e investimento, capacidade de desenvolvimento local. A desindustrialização do Brasil foi a mais acelerada e mais perversa, pois destruiu os bons empregos. Foi diferente, por exemplo, no Reino Unido, onde houve uma mudança nas vagas de trabalho, do setor industrial para outras áreas com salários maiores, caso da alta tecnologia. No Brasil, reina a precariedade. De qualquer forma, acho melhor olhar com certa calma, não fazer nada apressadamente. Isso também vale, e com mais razão, para a adesão à OCDE. Se há alguma experiência que acumulei em mesas de negociação, é esta: a pior coisa é a pressa. É como o goleiro que salta antes do chute. Pode até pegar a bola, mas a chance fica bem menor.
Uma nova onda de governos progressistas se espalha pela América do Sul, mas as circunstâncias não são as mesmas da primeira década do século 21. O mundo está à beira de uma recessão, não há um boom de commodities, os novos mandatários enfrentam dificuldades econômicas e políticas profundas, caso da Argentina, do Chile e, em um provável governo Lula, do Brasil. O aprofundamento da integração regional, diante do quadro atual, não se tornou mais difícil? Não vivemos um momento de cada um por si?
A gente sempre pode ver a xícara meio cheia ou meio vazia. Você a olha meio vazia. Eu a vejo meio cheia. No passado, negociamos com o Álvaro Uribe, um homem de direita, ligado aos Estados Unidos, defensor de bases militares norte-americanas na Colômbia. Parece mais fácil negociar com o Gustavo Petro, não? As dificuldades existem, claro, mas aumentou a consciência da importância da unidade. Não acho as condições mais difíceis agora. Quando começamos a trabalhar pelo reforço do Mercosul, a negociar os acordos que levariam à criação da Unasul, a proposta da Alca ainda estava na mesa. Na época, até a Argentina, antes do governo Kirchner, queria aderir. Aliás, no Brasil, no governo Lula, não quero citar nomes, vários de meus colegas também defendiam acelerar a implantação da área de livre-comércio com os Estados Unidos. Queríamos, porém, dar prioridade ao Mercosul, à América do Sul, e evitar as mesmas questões postas no acordo com a União Europeia: o risco de limitar o nosso espaço para o desenvolvimento tecnológico e industrial. O essencial agora é entender as mudanças ocorridas de lá para cá. Há uma crescente preocupação com o desenvolvimento verde e “azul”, como ressalta o Chile, em referência aos oceanos. Há situações complexas, não necessariamente ideológicas. Vejamos o Uruguai. Na época do Tabaré Vázquez, eleito pela Frente Ampla, de centro-esquerda, o governo uruguaio ou parte dele queria fazer um acordo em separado com Washington. Agora, no mandato do Lacalle Pou, de direita, Montevideu acena para a China. Tem um mal-estar no Uruguai e é necessário compreender. Procurar demonstrar os ganhos que eles terão com o aprofundamento do Mercosul. É uma tarefa dos países maiores, principalmente do Brasil.
Em uma entrevista recente, o senhor disse que não dá para pensar na preservação da Amazônia sem trazer a Venezuela para o debate.
Não dá e eu acho que a própria Venezuela, em termos econômicos, vive uma nuance. Eles adotaram a dolarização e, no caso venezuelano, isso tem ajudado a combater a inflação, há maior previsibilidade, as mercadorias começam a reaparecer nos supermercados. A necessidade do petróleo venezuelano da parte dos EUA e da Europa, nas atuais circunstâncias, vai levar a algum tipo de negociação. Talvez não insistam nessa estratégia de reconhecer os Guaidós da vida.
O senhor estaria disposto a reassumir o Ministério das Relações Exteriores em um eventual governo Lula?
Disse antes e repito: atravessaremos essa ponte quando chegarmos lá. Não tenho ambição de cargo, mas não vou recusar uma convocação do Lula, se ele achar necessária. Não acho que seja. Há outros nomes para o posto. Muitos defendem, e eu concordo, que o ideal seria nomear uma mulher. Seria bom um ministério com equilíbrio de gênero e de raça, embora atualmente seja mais difícil resolver essa equação completamente. A velhice tem seus méritos, entre eles a experiência, mas a juventude também tem: energia, sensibilidade para novos temas. Quem será o próximo chanceler não é um problema. Nem para mim nem para o Brasil.
Como o Itamaraty sairá destes quatro anos de gestão Bolsonaro. Ficarão marcas?
O Itamaraty é como um instrumento musical de qualidade, mas a partitura tem de ser boa e o maestro, bom. Há muita gente nova e corajosa, disposta a discutir o Brasil. O “velho” Itamaraty, do qual faço parte, tinha mais quadros conservadores. Oportunismo há, claro, como em todas as profissões. Mas se a condução da orquestra for boa, as coisas vão se ajustar.
Dará muito trabalho colocar os militares, que ocupam milhares de cargos de confiança no governo Bolsonaro, de volta nas casernas. Esse acúmulo de poder dos generais será um empecilho para quem sucederá o atual presidente da República?
O ajuste será mais natural do que muitos imaginam. As ações do governo Bolsonaro fizeram muito mal às Forças Armadas. Não sou eu quem diz, pesquisas de opinião mostram. Segundo um levantamento internacional, o Brasil é o país onde os militares têm a pior avaliação, gozam de menos confiança da população. Os oficiais se preocupam. Quando eu estava no Ministério da Defesa, eles se orgulhavam do fato de, naquela época, as Forças Armadas serem apreciadas pelo povo, terem uma avaliação melhor do que outras instituições. É um absurdo ter 7 mil, 8 mil militares em cargos, a maioria tipicamente civil. Mas naturalmente, em uma mudança de governo, isso irá se dissolver. São postos de confiança, ligados a ministérios comandados por generais. Quando ocorrer a mudança de ministros, eles voltarão à função de defender o país. Nos governos Lula e Dilma, deu-se muita importância a esse papel das Forças Armadas. Foram os mandatos, desde o fim da ditadura, que mais investiram em Defesa. Fizemos o acordo de produção do submarino nuclear, compramos caças de última geração e novos equipamentos, melhoramos a proteção cibernética. Não excluo a possibilidade de militares ocuparem cargos civis, isso aconteceu, de forma limitada, nos tempos do PT, mas a escolha deve ser feita em função de competências comprovadas. Houve um grande grau de oportunismo por parte das Forças Armadas, mas esse pessoal irá embora juntamente com o Bolsonaro.
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