A pandemia reafirma a necessidade de reestruturação do atual sistema produtivo, à qual a experiência recente da economia solidária tem muito a contribuir
Em 1996, o economista Paul Singer, socialista democrático que se tornou uma das maiores referências mundiais para a economia social e solidária, escreveu um pequeno artigo denominado “Economia solidária contra o desemprego” — num momento em que o desemprego constituía um enorme flagelo para trabalhadores do Brasil e do mundo. Neste quase um quarto de século desde então, a economia solidária acumulou experiências econômicas e políticas e passou a integrar os programas locais e de organismos internacionais sobre alternativas para o futuro da humanidade. Cabe aqui um registro de inciativas como o bem viver na América Latina, a defesa do FIB (Felicidade Interna Bruta) como indicador sistêmico para integrar desenvolvimento econômico, ambiente e qualidade de vida, os esforços do Papa Francisco para promover uma economia socialmente justa, economicamente viável, ambientalmente sustentável e eticamente responsável, além de inúmeras propostas socializantes, democráticas e preocupadas com o futuro do planeta que estão sendo debatidas com a participação de cientistas (muitos reconhecidos com o Prêmio Nobel) e militantes sociais.
A emergência desta nova onda histórica do associativismo, do cooperativismo e do comunitarismo econômico foi uma resposta das pessoas frente à crise que se abateu com a ascensão do neoliberalismo e da financeirização da economia. Mas também é parte da nova onda de mobilização social alternativa iniciada nos anos de 1960 e ampliada nos movimentos democráticos de base, na década de 1980, em contraposição ao socialismo real burocrático, a perda de legitimidade da burocrática social democracia europeia e ao autoritarismo militar na América Latina e África. Assim, podemos afirmar que a economia solidária foi uma resposta democrática dos movimentos sociais à crise provocada pela acumulação capitalismo e ao modelo societário do socialismo real.
Para além do movimento socialista de caráter libertário, a economia solidária está enraizada nos movimentos dos povos e comunidades tradicionais, movimentos de luta pela terra, águas e florestas, movimentos de moradia, movimentos socioterritoriais, movimento de desempregados, movimentos ambientalistas, movimento negro, movimento feminista, movimentos em defesa da cultura popular, movimento da luta antimanicomial e tantos outros que constituíram e constituem a agenda da nas esperanças emancipatórias da atualidade.
No Brasil sua base social é popular composta principalmente por camponeses, agricultores familiares, produtores agroecológicos, catadores de materiais recicláveis e produtores artesanais e coletivos culturais. A forma de organização é associativa, cooperativa, comunitária, participativa e autogestionária. Sua articulação ocorre por meio da formação de redes de cooperação e práticas federativas ou confederativas.
É necessário reconhecer que a economia solidária ainda permanece invisibilizada para a sociedade em geral e para as estatísticas econômicas. Um esforço para superar este desafio foi realizado pela Secretaria Nacional de Economia Solidária (extinta em 2016) com a realização de dois mapeamentos nacionais dos empreendimentos econômicos solidários. Foi possível registrar a existência de mais de 30 mil experiências envolvendo diretamente mais de dois milhões de pessoas.
É notório a contribuição deste tipo de organização econômica para incluir pessoas em situação de vulnerabilidade, promover processos de recuperação de empresas falidas, promover o desenvolvimento sustentável e a democratização da economia. Inúmeros exemplos podem demonstrar tal contribuição. Associações e cooperativas de usuários da saúde mental, cooperativas e redes de reciclagem de materiais organizadas e geridas por catadores, complexos cooperativos que recuperaram empresas por meio da autogestão, a exemplo da Uniforja (Diadema/SP), as redes de colaboração solidária existentes no Semi-árido, Cerrado e Amazônia; as redes de produção agroecológica, cooperativas da agricultura familiar e assentamentos de reforma agrária, pontos de cultura nas periferias urbanas, bancos comunitários de desenvolvimento, fundos rotativos de crédito, e muitas outras experiências espalhadas em todo o território nacional.
As consequências da pandemia do novo coronavírus têm suscitado questionamentos sobre a experimentação conduzida no campo da economia solidária nas últimas décadas, no sentido de estabelecer práticas produtivas mais alinhadas à justiça social e à preservação do meio ambiente. Cabe indagar, portanto, sobre as contribuições que essa aprendizagem histórica pode dar para a necessária reconstrução societária frente à crise atual.
Em primeiro lugar, é preciso considerar que a economia solidária não constitui um sistema social apartado do sistema societário hegemônico. É um amplo processo de experimentação desenvolvido nas zonas periféricas que denuncia os efeitos destrutivos, em termos humanos e ambientais, da sociedade hegemônica, mas que ao mesmo tempo é afetado pela sua dinâmica e suas crises.
É o que podemos constatar no contexto atual. A economia solidária é um modelo que privilegia interações “face a face”, ou seja, é uma economia feita de pessoas para as pessoas, que depende do encontro delas para produzir, trocar e consumir. As exigências do isolamento social como principal medida de contenção da covid-19 interditaram as possibilidades de encontro e comprometeram a continuidade desses processos socioeconômicos. Isso pode ser constatado em inúmeras situações, como no caso das atividades de reciclagem de matérias desenvolvidas pelas cooperativas e associações de catadores. Nos processos em que a produção é familiar e autônoma, os laços interrompidos foram com o mercado, seja ele institucional, justo ou convencional. Com a suspensão das aulas escolares e outras atividades governamentais, as associações e cooperativas da agricultura familiar, assentamentos e comunidades tradicionais produtoras de alimentos não puderam comercializar seus produtos para os programas de alimentação. O mesmo aconteceu com o fechamento dos espaços fixos de comercialização e as feiras. Também temos a situação da cultura, que ficou impossibilitada de realizar atividades e apresentações públicas. Enfim, o distanciamento provocou a interrupção dos fluxos da economia solidária e fez com que trabalhadores passassem a depender de outras fontes de renda, a exemplo do auxílio emergencial.
Mas a crise da economia solidária é anterior à pandemia. Esse modelo — assim como o conjunto das classes que vivem do trabalho e as periferias — já estava sofrendo com a ascensão do ultraneoliberalismo e do populismo autoritário, que lançou as camadas populares a sua própria sorte, aprofundou a desigualdade e desmontou as incipientes estratégias políticas da proteção da natureza.
No entanto, a crise do coronavírus não coloca em xeque a economia solidária da mesma maneira como o faz com a economia dominante, suas ideologias reacionárias e políticas autoritárias. Ao contrário, ela reafirma a necessidade, a urgência e oportunidade para a construção de um novo sistema econômico, ao qual a experiência recente da economia solidária tem muito a contribuir.
Com a pandemia, a “necropolítica” aplicada a humanos e à natureza entra em conflito com impulsos vitais para preservação da vida, e as esperanças passam a estar depositadas no resgate da solidariedade em contraposição à competitividade e à violência. De um lado, cresce a defesa da redistribuição de serviços públicos e de renda dissociadas do trabalho; de outro, a importância da solidariedade cooperativa para a recomposição do tecido social e econômico. Também vem sendo valorizada a precaução própria de um ethos científico do cuidado e da proteção frente ao desconhecido e ao perigo. A sobreposição de crises se afirma como oportunidade, ao impor uma paralisação (uma espécie de lockout, uma greve geral) e abrir as possibilidades para necessárias transformações civilizatórias.
A contribuição da economia solidária no enfrentamento à crise tem pouco relevância quando desarticulada de um projeto político nacional coerente com seus princípios
O momento reposiciona a economia solidária como protagonista das alternativas contra as crises, renovando a importância do conhecimento acumulado em suas experiências recentes. O atual desafio é ir além da necessária e urgente estratégia de combate ao desemprego, de geração de renda e de inclusão produtiva de populações em situação de vulnerabilidade. Deve-se inserir o modelo coletivo e autogestionário de produção e distribuição de riqueza numa proposta sócio-econômica-ambiental que possibilite realizar com mais amplitude o que os projetos de economia solidária já têm praticado.
A experimentação recente da economia solidária permite uma síntese preliminar de características que podem ser fundamentais para a construção de um futuro alternativo. Uma economia de pessoas produzindo bens necessários, úteis, saudáveis, marcada pela soberania alimentar em processos de trabalho não alienados. Não basta assegurar o direito ao trabalho, mas é preciso um trabalho com sentido. Uma produção inserida em redes de comércio justo ou mercados institucionais para que não fique subordinada às cadeias geridas pelas corporações que mantêm os mecanismos de transferência de valor do trabalho para o capital improdutivo. Uma economia financiada solidariamente por cooperativas de crédito, os bancos comunitários de desenvolvimento, os fundos rotativos e fundos de investimentos éticos. Uma economia de bens e serviços que forma redes de consumidores que praticam o consumo consciente e responsável. Economias autogestionárias voltadas para a preservação dos biomas, das florestas e garantam direitos territoriais dos seus povos com seus saberes sobre o uso sustentável dos recursos naturais e promotores da justiça ambiental a exemplo das experiências de economia cooperativa na Amazônia, do Cerrado e do Semiárido. A economia solidária “é um ato pedagógico em si” (mais uma expressão de Paul Singer) que tem na pedagogia da autogestão, na educação popular, cidadã e da diversidade uma aproximação histórica com os movimentos educacionais democráticos e críticos. A economia solidária pode potencializar os dinamismos culturais, promover a ação cultural e da solidariedade a luz da experiência do Programa Cultura Viva. E a economia solidária tem suas bases científicas e tecnológicas nas tecnologias sociais, na adequação sociotécnica, na ciência crítica e nas epistemologias que promovem o diálogo entre conhecimento científico e conhecimento popular. O importante é ter em mente que todos estes elementos já estão presentes nos acúmulos teóricos e práticos da economia solidária em seu passado recente. Portanto, a economia solidária possibilita organizar a economia na sua integralidade e a reinserção da economia na sociedade (Polany).
O desafio é promover a transição de uma experimentação microeconômica e desarticulada num programa econômico mais consciente e planejado. Para tanto, duas condições são fundamentais. Uma é a articulação de base com a criação de redes as mais amplas possíveis de movimentos e organizações populares. A outra é a participação do Estado e das políticas públicas promovendo a cidadania da economia solidária e a incorporação desse modelo na economia pública. As possibilidades da economia solidária dependem de sua constitucionalidade, como foi o caso no Equador e na Bolívia. Trata-se de um sistema que compõe o projeto nacional de desenvolvimento ou de bem viver. A Proposta de Emenda Constitucional nº 69/2019 é uma iniciativa muito importante nessa direção ao incluir a economia solidária na entre os princípios da Ordem Econômica. Também se faz necessária a aprovação da lei nacional de economia solidária e da democratização dos marcos legais do cooperativismo.
A economia solidária é uma proposta democrática e socializante incompatível com o neoliberalismo e o populismo autoritário. Possui um caráter focalizado e assistencialista para políticas neoliberais e é residual para políticas desenvolvimentistas. Sua contribuição no enfrentamento à crise tem pouco relevância quando desarticulada de um projeto político nacional coerente com seus princípios e processos organizativos.
Uma das potencialidades da economia solidária está na sua relação com políticas democratizantes da riqueza. Políticas que efetivamente democratizem o acesso à terra, à água, às florestas e aos meios de produção. Sem uma política distributiva a tendência é a economia solidária permanecer como mera estratégia de sobrevivência. A economia solidária requer atuação do poder público, mas não qualquer tipo de poder público. Para também reestabelecer a democracia contra o projeto político da “extrema-direita” é condição básica.
A partir da década de 1990, ocorreram inúmeros esforços governamentais para a implementação de políticas públicas de economia solidária, passando pelos municípios, estados e, a partir de 2003, pela Secretaria Nacional de Economia Solidária. Dessa experiência, é possível constatar que essa proposta requer políticas ativas para assegurar acesso ao conhecimento (educação, assessoramento técnico, tecnologias sociais), acesso a meios de produção (fomento e financiamento) e acesso a mercados (redes de comercialização, consumo responsável e mercados institucionais como foi o caso do Programa Nacional de Alimentação Escolar para a agricultura familiar). No contexto atual, um bom (re)começo seria estender as políticas voltadas ao microempreendedorismo e empreendedorismo individual para a economia solidária.
Dada sua profundidade, a crise do coronavírus poderá contribuir para avanços nos necessários consensos e para a formação de uma correlação de forças mais favorável à maior presença do Estado, e não somente à retomada de políticas nacionais, mas sua ampliação para que estas experiências econômicas de caráter substantivo, voltadas para a produção e reprodução da vida , permeadas por padrões éticos mais solidários e menos competitivos, do cuidado com a natureza e da defesa da democracia possam se consolidar. Esta seria a chance para a economia solidária ser uma alternativa contra a crise da pandemia
Valmor Schiochet é doutor em sociologia pela UnB (Universidade de Brasília), Docente do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional da Furb (Universidade Regional de Blumenau) e ex-diretor da Secretaria Nacional de Economia Solidária.
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