A necessidade de se racionar recursos e a indignação mundial diante de abusos policiais são oportunidades para investir em inteligência em detrimento do uso da força
Discutir segurança pública e seus desafios em tempos de pandemia remete a alguns aspectos centrais. Por um lado, a redução sem precedentes da circulação de pessoas nas ruas, decorrente das medidas de isolamento social, levanta dúvidas sobre como serão afetados os índices de criminalidade — dentro e fora do ambiente doméstico. Por outro, cabe avaliar como a atuação policial tem se adaptado aos novos riscos representados pela exposição ao vírus. Afinal, trata-se de um serviço essencial que não pode parar.
Infelizmente, não existe informação em nível nacional que consolide dados dos estados brasileiros sobre a quantidade de policiais contaminados, afastados e vítimas fatais da covid-19. Há apenas informações fragmentadas. Por exemplo, dados do estado de São Paulo das três últimas semanas do mês de maio indicam que o número de policiais infectados saltou de 800 para 3.000, e o número de mortes chegou à 10 no mês, o dobro de meses anteriores. Já no Ceará, informações dão conta de 2.000 policiais civis e militares afastados em maio. Não é pouca coisa.
Pesquisa realizada pela Fundação Getulio Vargas e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública entrevistou mais de 1.500 policiais no país e identificou que, em São Paulo, cerca de 60% dos policiais ouvidos afirmou sentir medo de contrair ou ter algum familiar contaminado pelo novo coronavírus. Em outros estados, o número chega a quase 70%. Somente cerca de metade dos policiais em São Paulo (46%) acredita ter recebido EPIs (Equipamentos de Proteção Individual) adequados para desenvolver seu trabalho, enquanto em outros estados, essa cifra cai para apenas 32,1%.
Quanto ao treinamento para trabalhar na pandemia, em São Paulo, apenas 34% afirmam ter recebido diretrizes objetivas de como atuar, e nos outros estados 84,6% alegaram não ter recebido nenhum tipo de orientação. É uma tropa com medo e pouca estrutura e preparo para lidar com a crise. Discursos de muitas autoridades da área afirmam que estão sendo providenciados os equipamentos e condições de trabalho aos agentes de segurança pública, mas o fato é que há poucas informações precisas e pouco esforço coordenado por parte do governo federal para fazer chegar auxílio financeiro aos estados e municípios para aquisição de EPIs, o que deixa os policiais extremamente vulneráveis ao vírus. Isso deveria ser uma prioridade, mas não parece estar no foco das autoridades.
Em relação ao comportamento da violência e criminalidade, um aspecto já esperado, pois foi visto em outros países antes de a pandemia chegar ao Brasil, foi o aumento da violência doméstica e intrafamiliar. O aumento da convivência em ambiente doméstico, decorrente das medidas de isolamento social, intensifica o contato com o agressor nos casos em que há violência instalada. A limitação de sair de casa dificulta que o abuso seja identificado no caso de crianças e adolescentes, e dificulta a denúncia e rompimento do ciclo violento, no caso das mulheres. Dados do Disque 180, canal do governo federal, mostraram um aumento de 40% nas denúncias de violência doméstica em abril de 2020 comparado com o mesmo mês de 2019. Análise do Instituto Sou da Paz aponta que abril de 2020 foi o mês com segundo maior número de ocorrências de feminicídios nos últimos 16 meses no estado de São Paulo.
A REDUÇÃO DOS CRIMES PATRIMONIAIS TRAZ UM CONTEXTO IDEAL PARA QUE O REDUZIDO EFETIVO POLICIAL SEJA DIRECIONADO PARA AÇÕES MAIS INTELIGENTES
Já os crimes patrimoniais tendem a cair. De fato, roubos e furtos de veículos caíram no período: em São Paulo, o mês de abril de 2020 foi o que apresentou o menor número dos últimos 16 meses com redução em todas as grandes regiões, segundo análise do Instituto Sou da Paz. Há quem diga, no entanto, que esses números ainda são altos quando considerada a proporção reduzida de pessoas circulando.
Por fim, chama a atenção o aumento dos homicídios. O dado nacional mais recente do Monitor da Violência registra 3.950 homicídios, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte em abril de 2020, um aumento de 8% em relação ao mesmo mês do ano passado. Já considerando o quadrimestre, foram 15.868 vítimas de assassinatos neste ano, uma diferença de 1.288 mortes a mais. Infelizmente, como boa parte desses homicídios não são investigados nem esclarecidos, não há informações sobre a causa e o contexto das mortes, razão pela qual não há explicações conclusivas sobre esse aumento. Há algumas hipóteses como o aumento dos conflitos interpessoais ou a crise ter afetado também a economia do crime organizado aumentando acerto de contas e outras mortes violentas. A falta de clareza torna ainda mais urgente que seja também uma prioridade dos governos entender por que os homicídios vêm crescendo, buscar solucioná-los e preveni-los.
Também tem se intensificado as ações violentas por parte das polícias. Num momento em que o mundo se mobiliza diante do assassinato brutal de George Floyd por um policial em Minneapolis, nos Estados Unidos, o Brasil segue acumulando mortes violentas e com viés racial por policiais. O menino João Pedro, de 14 anos, foi assassinado dentro de casa numa operação policial em São Gonçalo, Rio de Janeiro. Ele era um garoto negro que brincava dentro de casa quando polícia entrou atirando. O número de mortes causadas por policiais no Rio de Janeiro nos primeiros cinco meses de 2020 foi o mais alto dos últimos 22 anos. Foram mortas 721 pessoas nesse período, sendo que, dessas vítimas, 78% eram pretas e pardas. Em São Paulo, a letalidade em ações policiais atingiu níveis dos mais altos em anos recentes, mesmo em tempos de distanciamento social.
Nesse sentido, vemos que a polícia perde uma importante oportunidade de rever e redirecionar sua atuação. A redução dos crimes patrimoniais e o aumento dos homicídios traz um contexto ideal para que o reduzido efetivo policial fosse direcionado para ações mais inteligentes, planejadas e focadas na investigação e esclarecimento dos homicídios e nos casos de violência doméstica, por exemplo. Não se quer aqui dizer que não haverá outros crimes de oportunidade e aprofundamento do crime organizado, por exemplo. Mas justamente por conta da necessidade de se racionar os recursos da segurança pública imposta pela pandemia e pela indignação mundial diante dos abusos policiais, o País tem a oportunidade ímpar para investir em inteligência em detrimento do uso da força, que vem sendo empregada em excesso, tomando a forma de brutalidade policial.
Por fim, vale destacar a relação nefasta do governo federal com as políticas de segurança pública e seus diferentes agentes. Em plena pandemia, o governo Bolsonaro revogou importantes portarias do Exército brasileiro que fortaleciam o rastreamento de armas e a marcação de munições, mecanismos importantes para o esclarecimento de crimes. A revogação das portarias a pedido do presidente deixa clara a baixa prioridade que o governo dá a segurança pública, demonstrando seu compromisso com grupos organizados de lobby do armamento, além de uma ingerência direta da autonomia do Exército em sua atuação técnica sobre produtos controlados, como as armas e munições.
A falta de republicanismo por parte do governo federal em relação às polícias se manifestou também nas acusações de ingerência na Polícia Federal feitas por Sergio Moro em sua saída do Ministério da Justiça, além da influência do bolsonarismo nas polícias estaduais. Há uma importante discussão entre pesquisadores e policiais brasileiros sobre o risco relativo de que essas instituições, sobretudo as militares, sejam instrumentalizadas pelo presidente. Os termos do debate não apontam riscos de uma sublevação das polícias militares, mas de que deixem de atender os comandos dos governadores, chefes das polícias estaduais, por meio de greve branca, de aumento de violência policial e outras formas de boicote.
Esses aspectos representam um risco à democracia brasileira. A compreensão de que segurança pública serve para preservar vidas e garantir direitos de todas as pessoas é fundamental para superar esses arroubos antidemocráticos. Há também caminhos concretos a seguir, como direcionar esforços federais para estruturar as forças de segurança estaduais no enfrentamento da pandemia, priorizar a implantação de políticas de uso da força com procedimentos e princípios claros e o enfrentamento ao racismo, integrar políticas sociais às de segurança pública para lidar com a violência doméstica e intrafamiliar, priorizar a inteligência e o planejamento na atuação policial, investigar e esclarecer todos os homicídios e fortalecer uma política de controle de armas responsável. Boa parte dessas medidas já foram experimentadas de forma fragmentada pelo país. Torná-las perenes e coordenadas é o pulo do gato para atravessarmos melhor a pandemia e fortalecermos nossa democracia.
Carolina Ricardo é diretora executiva do Instituto Sou da Paz, advogada e especialista em segurança pública.
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