Era de se esperar que a comida — sua disponibilidade, o acesso a ela e a qualidade do que se come — viesse a requerer atenção urgente, ao lado e como complemento indissociável da atenção à saúde das pessoas
Vem sendo anunciado que o Brasil atingirá, entre fins de abril e início de maio, o pico da pandemia de covid-19, medido pelo número de infectados e mortos e pela taxa de crescimento de ambas as ocorrências. Indicador sem dúvida assustador, infelizmente, ele não é o único parâmetro para avaliar a gravidade da crise atual, pois a fome desponta como possível causadora de danos igualmente graves para um grande contingente de brasileiros.
Era de se esperar que a comida — sua disponibilidade, o acesso a ela e a qualidade do que se come — viesse a requerer atenção urgente, ao lado e como complemento indissociável da atenção à saúde das pessoas. É fato que o temor pela falta afeta também aqueles para quem comprar e comer eram uma rotina cumprida sem maiores reflexões, porém, nada comparável às populações vulnerabilizadas que viram agravada a busca diária por assegurar comida para si e os seus. Após o pico, viveremos um contexto com contornos ainda incertos de contaminação, carência de alimentos e fome.
Baseando-nos nos dados oficiais do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) para 2018, o indicador de pobreza monetária permite afirmar que o enorme contingente dos mais ameaçados começa em 13 milhões de pessoas vivendo em pobreza extrema (6,5% da população), podendo chegar até as 54,8 milhões de pessoas consideradas pobres (25,3% da população), indicador que vem crescendo desde 2015 e que certamente se agravou com o aprofundamento da recessão em 2019 e 2020. Importa salientar, em termos de perspectivas, o elevado patamar de desemprego que afetou 11,2% da força de trabalho em janeiro de 2020 (11,9 milhões de pessoas), podendo chegar a 17,6% até o final de 2020 segundo analistas. Ao dado do desemprego aberto devemos juntar o chamado trabalho informal, no qual se encontram 38,4 milhões de pessoas (41,1% da força de trabalho, em 2019) sinônimo de precarização do trabalho, boa parte composto de subemprego ou desemprego disfarçado. Como se sabe, uma questão social com essas dimensões vem sendo abordada pelo governo federal com a narrativa das reformas que, de fato, comprometem instrumentos de proteção social, muitos deles essenciais para o tema aqui tratado.
Para dar rosto aos números, destaco entre os vulnerabilizados nas cidades e nos campos os trabalhadores sem emprego ou com ocupação precária, moradores das periferias, em particular, negros, população em situação de rua (contados aos milhares), famílias rurais com acesso precário à terra e outros recursos, comunidades quilombolas e povos indígenas. A fome oculta (subnutrição), como a chamava Josué de Castro, corrói as vidas de parcela expressiva da população brasileira. Mais grave, está de volta a fome aguda, aquela que mata pela falta absoluta. A precariedade e atrasos na divulgação das estatísticas oficiais impedem comprovar o provável retorno do Brasil à vergonhosa condição de integrar o Mapa da Fome da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura), do qual havíamos saído em 2014.
Essa dupla face da crise atual — além de outras gravidades que extrapolam os limites deste texto — se desdobra em, pelo menos, duas direções. Por um lado, ela tem servido como justificativa sórdida da defesa da suspensão do chamado isolamento horizontal por aqueles que veem seus lucros afetados. Esse tipo de isolamento é medida dura, porém acertada, que acarretou a paralisação de muitas atividades e limitou a circulação da população. Num país como o Brasil, isolamento horizontal não quer dizer igualdade de condições no enfrentamento das circunstâncias atuais, havendo evidências de que as desigualdades sociais incidem sobre todas as questões que estão na ordem do dia, tanto no enfrentamento da pandemia, quanto no acesso à alimentação. Não obstante, há que desfazer a falsa dicotomia contágio x fome contida nas promessas mentirosas e repulsivas de suspender as medidas de isolamento visando assegurar emprego e evitar a fome — promessas vindas dos patrocinadores da recessão econômica e da perda de direitos no Brasil, ambas anteriores à pandemia.
JUNTO COM A RENDA MONETÁRIA, OS ALIMENTOS PARA UMA ALIMENTAÇÃO ADEQUADA E SAUDÁVEL DEVEM CHEGAR ONDE MORAM OS QUE DELES NECESSITAM
Por outro lado, correndo por fora do falso dilema “contágio com morte de alguns” versus “fome para muitos”, estão em curso por todo o país iniciativas as mais diversas para enfrentar a questão da produção e acesso a uma alimentação adequada e saudável. Também são apresentadas inúmeras proposições de ações e políticas públicas que, nesse caso, encontram eco na sociedade civil e em governos estaduais e municipais, haja vista a inexistência de interlocução com o governo federal. Consulte-se, a propósito, o elenco de proposições contidas no documento recém-lançado por cerca de 200 entidades e movimentos sociais intitulado "Garantir o direito à alimentação e combater a fome em tempos de coronavírus: a vida humana em primeiro lugar!" Vou aqui me limitar às questões de abastecimento alimentar abordadas de modo a combinar ações imediatas frente às emergências com a busca de objetivos permanentes que vão além do contexto de pandemia. É preciso promover o debate público de possibilidades para o país enquanto exigimos do Legislativo e Judiciário que equacionem o descalabro representado pela Presidência da República e seus acólitos.
A perspectiva é a de enfrentar, simultaneamente e em várias escalas de ação (nacional, estadual e municipal), a subnutrição e a fome junto com o acesso a uma alimentação adequada e saudável para todos, ao mesmo tempo em que são promovidas formas de produção, processamento e distribuição dos alimentos socialmente equitativas, ambientalmente sustentáveis e promotoras de diversidade cultural e ecológica. Esse tema engloba um conjunto diverso e complexo de atividades mediando o acesso aos alimentos e sua produção, envolve perspectivas muitas vezes conflitantes, nele se refletindo a “disputa pelo controle social sobre o abastecimento”, expressão usada por D. Goodman em “Alternative Food Networks: Knowledge, Place and Politics”.
Disponibilidade de renda monetária, acesso físico aos alimentos e regulação de preços e qualidade constituem um primeiro e urgente conjunto articulado de ações. Já se disse que a fome mata e não pode esperar, sendo razoável estimar sua elevada incidência nos miseráveis que ainda perambulam pelas ruas, nas favelas e bairros periféricos, que só costumam ser enxergados em episódios de revolta. Há importante arsenal de instrumentos permanentes de política pública criados no país nos últimos anos — em processo de desmonte desde 2016 intensificado a partir de 2019 — acrescidos de instrumentos para emergências que possibilitariam a ampliação imediata da transferência direta de renda aos mais necessitados (Cadastro Único para programas sociais, Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada, Aposentadoria e a recém-aprovada e tímida Renda Básica de Emergência), ao mesmo tempo em que se incorporaria a retomada da valorização permanente do salário-mínimo ampliado em sua abrangência. No entanto, são deploráveis as dificuldades alegadas para implementá-los e a timidez dos valores e metas, um dos conflitos abertos com a bíblia neoliberal hoje em mãos de Paulo Guedes e equipe — conflito mais ideológico que de disponibilidade de recursos que antecipa a disputa pós-pandemia com relação ao papel do Estado e o uso de recursos públicos na proteção social da população.
Junto com a renda monetária, os alimentos para uma alimentação adequada e saudável devem chegar onde moram os que deles necessitam, por meio de equipamentos de varejo e serviços de alimentação lá instalados ou por concessão pública (varejões móveis e feiras). Qualificar o pequeno varejo tradicional pode ser a oportunidade para iniciar a reversão do predomínio nesses estabelecimentos de produtos que refletem a pauta da indústria e das redes de supermercados, notadamente os alimentos ultraprocessados. Há que conferir grande destaque às ações comunitárias frutos da crescente solidariedade entre iguais que ocorrem em favelas e bairros periféricos por todo o país. Tais ações poderiam ser estimuladas a incorporar o acesso aos alimentos em outras direções, para além da necessária distribuição emergencial de cestas de alimentos. Os alimentos e a alimentação são fonte de vida (saúde) ao mesmo tempo em que geram emprego e ocupação.
O universo significativo e variado de iniciativas de produção, processamento e comercialização de alimentos oriundos da agricultura de base familiar, orgânica e agroecológica, que circulam em circuitos curtos, feiras, oferecimento de cestas entregues em domicílio, etc, muitos deles apoiados por consumidores com melhor condição social, carece de visibilidade e facilidades de logística. Elas poderiam ser apoiadas pelas administrações municipais, inclusive com o intuito de ampliar seu raio de ação na direção da população periférica. Esse é um caminho promissor ao favorecer o acesso a produtos frescos e pouco processados, com menor requisito de transporte e mais próximos das culturas alimentares e da biodiversidade. Ressalto o papel das feiras livres, em especial as feiras orgânicas e agroecológicas, cujo funcionamento deve estar sob coordenação das equipes de saúde de forma a minimizar o risco de contágio. O contexto atual confere ainda maior relevância à continuidade, adequação e ampliação, pelas administrações municipais, dos chamados equipamentos de segurança alimentar e nutricional (restaurantes populares, bancos de alimentos, cozinhas comunitárias e unidades de distribuição da agricultura familiar).
Dois programas vêm sendo objeto de intensa mobilização. Um deles é o Programa Nacional de Alimentação Escolar, fonte da principal, quando não a única, refeição diária de milhões de crianças pobres no país, com oferecimento diário e gratuito de refeições a cerca de 4O milhões de escolares em todos os municípios do Brasil. O necessário fechamento das escolas tem gerado propostas que preservam esse serviço essencial e não comprometem a compra prioritária de alimentos da agricultura familiar local, tais como a entrega periódica de cestas de alimentos para as famílias dos escolares adotando estratégias adequadas à pandemia. A despeito do projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional e sancionado pelo governo federal, e da ação de governos estaduais e municipais, há o temor de que a insuficiência de recursos permita atender menos da metade do público regular. Igualmente imediata deve ser a retomada do Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar, outra importante e inovadora conquista no âmbito das políticas públicas. No atual contexto, cabe destacar uma das modalidades de compra operadas pela Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), bem como por estados e municípios, que é a Compra com Doação de Alimentos, operacionalizada por meio das organizações sociais, associada à distribuição de cestas de alimentos às famílias carentes e em situação de vulnerabilidade.
A agricultura de base familiar e diversificada carece de políticas de emergência para continuar cumprindo com seu papel de garantir “comida de verdade”. Entre elas, mencionam-se as relacionadas com o crédito no âmbito do Pronaf (Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar), com o direito à água no semiárido (programa de cisternas rurais), e com as várias formas de apoio aos assentamentos da reforma agrária, comunidades rurais e de povos e comunidades tradicionais.
Não se ignora, por evidente, o lugar predominante ocupado pelo conjunto formado pelo agronegócio, grandes agroindústrias e indústria alimentar, e redes de supermercados, setores que recebem atenção prioritária do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, enquanto desde 2016 já não contamos com um ministério dedicado à agricultura familiar e à reforma agrária. Não é preciso insistir sobre os conflitos no campo e os danos sociais, ambientais e para a saúde humana causados pela agricultura e pecuária de grande escala e farta utilização de venenos, pelos alimentos ultraprocessados e o enorme poder de influenciar hábitos alimentares apoiados em intensa propaganda. Importa, porém, fazer um contraponto à narrativa de tranquilidade difundida pelo Ministério da Agricultura, com base em balanços produzidos pela Conab e analistas do setor agropecuário que apontam para um quadro de incertezas em face dos baixos estoques públicos e da valorização do real favorecendo as exportações e a concentração da produção nacional na soja, com estagnação da produção de arroz e feijão. Aumentos nos preços dos alimentos já são evidentes.
Nesses termos, em relação aos setores que há tempos impõem a regulação privada do abastecimento propõe-se retomar instrumentos de regulação pública, a começar pelo monitoramento dos fluxos e preços dos alimentos integrantes da cesta básica visando controlar a especulação em preços e atuar em face de episódios de desabastecimento. Esforço conjunto com as administrações municipais deve ser dirigido para a gestão de equipamentos públicos de abastecimento (varejões, sacolões, mercados municipais, feiras) que atenda os esforços na direção aqui apontada, para além de suas finalidades mercantis específicas. Igualmente importante é assegurar a proteção sanitária e social dos trabalhadores em todas as atividades do sistema alimentar de quem dependemos para assegurar o abastecimento de alimentos.
Chegou-se a formular uma proposta de política nacional de abastecimento alimentar para o Brasil, orientada pela promoção da soberania e segurança alimentar e nutricional e do direito humano à alimentação adequada e saudável. O Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional) liderou esse debate com intensa participação social ao longo de sua existência, desde 2003, antes de passar por crescente esvaziamento a partir de 2016 que levou ao seu fechamento já nos primeiros atos da Presidência da República instalada em 2019. A Caisan (Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional) foi igualmente desfeita no ano de 2019, resultando no desmonte do Sisan (Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional). Não obstante, o significativo acúmulo em termos de mobilização social e geração de conhecimento no campo da SSAN (Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional) e do DHA (Direito Humano à Alimentação Adequada e Saudável) no Brasil faz com que esteja em pleno processo preparatório uma Conferência Nacional Popular, Autônoma e Democrática em SSAN, em reação ao fechamento dos espaços de participação social pelo governo federal.
O protagonismo dos governos estaduais e municipais na presente pandemia tem aberto espaço para a materialização de algumas iniciativas como as aqui sugeridas. Entidades da sociedade civil têm pleiteado se engajado na constituição Comitês de Emergência em Segurança Alimentar e Nutricional, no âmbito dos estados e municípios. No entanto, a plena implementação de ações e políticas públicas na direção do que aqui se expôs se ressente de um marco institucional como o antes existente, participativo, intersetorial e sistêmico. Daí ser obrigatório afirmar esse requisito em vista de qualquer esforço de reconstrução do Estado brasileiro em bases democráticas, com respeito a direitos e efetiva participação social na formulação, implementação e monitoramento de políticas públicas. As distintas concepções, conflitos e escolhas daí resultantes comprovam a relação de mão dupla da política dos alimentos com a política em geral. O debate aberto das opções que levam a uma alimentação adequada e saudável para todos depende, portanto, de um ambiente democrático e um Estado permeável à participação da sociedade civil.
Renato S. Maluf é professor titular do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro). Integrante do FBSSAN (Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional) e presidente do Consea no período 2007-2011.
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