Coletivo RPU Brasil, coalizão de organizações da sociedade civil, monitora a situação do Estado brasileiro na Revisão Periódica Universal, mecanismo que cruza recomendações entre nações
Esta é a primeira vez que uma situação de retrocesso é observada desde que o Conselho da ONU foi instituído, em 2006, e passou a estabelecer recomendações e a monitorar os avanços e os problemas em relação aos direitos humanos entre os países que o compõem
A cada quatro anos e meio, o Brasil deve prestar contas sobre a situação dos direitos humanos ao Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, por meio da Revisão Periódica Universal (RPU), um mecanismo internacional que cruza recomendações sobre o tema entre as nações. A sociedade civil, articulada pelo Coletivo RPU Brasil, monitora esse dispositivo e fez o seu diagnóstico da situação. Os dados são gravíssimos e inéditos na história da participação do Brasil na Revisão: quase metade (46%) de todas as recomendações ultrapassaram o não cumprimento e estão em retrocesso. Somando os 35% que estão em constante pendência, chega-se ao total de 80% de pontos descumpridos. Somente 17% dos tópicos estão em implementação, mas parcialmente, e apenas uma das 242 recomendações está sendo, de fato, cumprida.
As 31 entidades, redes e coletivos do Coletivo RPU Brasil, em parceria com a FES-Brasil, sistematizaram as orientações feitas ao país e construíram 11 relatórios divididos por temas — povos indígenas e meio ambiente, saúde e vida digna, igualdade e não discriminação de gênero, racismo, entre outros. O conteúdo foi apresentado hoje, 25 de maio, no Seminário: Brasil na RPU - 2022, que vai reunir em Brasília representantes do governo brasileiro, membros da ONU e Embaixadas que atuam no Conselho de Direitos Humanos. O Seminário é realizado em parceria com o Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), órgão colegiado de composição paritária que tem por finalidade a promoção e a defesa dos direitos humanos no Brasil.
Seguindo o calendário das Nações Unidas, o Estado brasileiro já devia ter aberto seu relatório em andamento para consulta pública. A comitiva brasileira, chefiada pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) e pelo Itamaraty, deve entregar seu relatório final até 8 de agosto em Genebra, na Suíça. A devolutiva deve responder se as orientações feitas por outros países estão sendo seguidas.
Recentemente, o MMFDH informou ao Conselho Nacional de Direitos Humanos que o relatório já estava sendo elaborado por meio de consulta interministerial e afirmou à Comissão de Obrigações Internacionais deste Conselho que o abriria para consulta pública na próxima segunda-feira, dia 23 de maio. O Coletivo RPU espera que o Estado brasileiro compareça ao Encontro Presencial, em Brasília, apresente seus resultados e os coloque em debate com a sociedade civil.
"Sabemos o quanto o Brasil vem retrocedendo em direitos humanos. Os dados que dão substância à nossa análise já são de conhecimento público. Há dois anos, o Estado brasileiro apresentou dados desatualizados, inclusive referentes a governos anteriores e de organismos que já foram extintos. Esperamos que, desta vez, o Estado pare de negar os fatos e que apresente informações consistentes para debater com a sociedade civil", disse Fernanda Lapa, Diretora Executiva do Instituto de Desenvolvimento e Direitos Humanos - IDDH, organização que atualmente coordena o Coletivo RPU Brasil.
Um dos 11 relatórios preparado pelo Coletivo RPU tem como tema os povos indígenas e o meio ambiente. Das 27 recomendações feitas por outros países-membros das Nações Unidas, nenhuma foi cumprida, sequer parcialmente. São 11 em não-cumprimento e 16 em retrocesso. Um dos pontos avaliados é, por exemplo, a saúde indígena, que sofreu com redução de orçamento, com a reestruturação do programa Mais Médicos, e com a tentativa de municipalização e extinção da Secretaria Especial de Saúde Indígena.
“Nosso relatório mostra um forte acirramento dos ataques aos povos indígenas e seus territórios, com inúmeras violações de seus direitos por parte do Estado. Na contramão das recomendações da ONU, o governo brasileiro adotou ações deliberadas contra órgãos federais que deveriam proteger e promover os direitos desses povos, promovendo o esfacelamento de políticas públicas diferenciadas conquistadas em anos anteriores. Todos os processos de reconhecimento territorial no país estão paralisados, configurando um grave precedente de desrespeito ao texto constitucional brasileiro”, afirma o antropólogo Luis Donisete Benzi Grupioni, secretário da Rede de Cooperação Amazônica (RCA).
No relatório sobre saúde e vida digna, apenas uma das 12 recomendações avaliadas estava parcialmente cumprida: as estratégias de combate ao HIV no Brasil. Entretanto, o Decreto 9795/2019 promoveu agrupamento de patologias com diferenças significativas, o que levou a disputa por recursos. Não houve aumento, por exemplo, de recursos para as estratégias de prevenção ao HIV. Quatro recomendações que dizem respeito à saúde reprodutiva estão em situação de retrocesso: do direito à assistência pré-natal ao acesso à interrupção voluntária da gravidez. “A situação tem piorado a cada ano, as políticas sem base em evidência científica sendo adotadas pelo governo federal que não tem cumprido sua responsabilidade no cuidado com a saúde reprodutiva das mulheres”, diz Alessandra Nilo, coordenadora Geral da Gestos–Soropositividade, Comunicação e Gênero.
A violência causada por agentes da polícia em serviço também está em situação alarmante no monitoramento feito pelo Coletivo RPU, e refletem os graves episódios de mortes e chacinas ocorridas pelo país nos últimos anos. Existem sete recomendações endereçadas às investigações e à mitigação desses crimes. Todas estão em situação de retrocesso. O mesmo acontece às sete orientações dadas sobre prevenção e combate à tortura: todas retrocederam.O Brasil continua com taxas alarmantes de letalidade policial e violência institucional, sendo jovens negros as principais vítimas. As ações violentas promovidas por policiais em serviço aumentou no Brasil durante a pandemia e muitas das vezes essas ações resultam em chacinas, como a do morro do Fallet, em 2019, onde foram assassinadas 15 pessoas, e a da favela do Jacarezinho, na qual morreram 28 pessoas e é a maior chacina do estado do Rio de Janeiro.
"São fatos que, mesmo acontecendo no Rio de Janeiro, mostram que o Estado brasileiro além de não estar cumprindo as recomendações, ainda atenta contra elas quando realiza essas ações no país inteiro. Essa violência também acontece no sistema prisional brasileiro quando se usa a tortura como método institucional de controle da população negra, pobre e favelada, que é a maioria nestes espaços. E a resposta do estado para isso é o enfraquecimento do sistema nacional de prevenção e combate a tortura, retrocedendo também nesses pontos as recomendações da RPU. Precisamos seguir combatendo e denunciando essas ações racistas e violentas do estado brasileiro contra a maioria da sua população", destaca Antonio Neto, Pesquisador da Justiça Global.
Sobre a Revisão Periódica Universal
A Revisão Periódica Universal (RPU) é um mecanismo periódico e universal do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, em funcionamento desde 2008. Todos os Estados-parte da ONU participam, em ciclos de aproximadamente 4 anos e meio. A função desse instrumento é revisar/verificar o cumprimento das obrigações e compromissos de direitos humanos assumidos pelos 193 Estados-membros da ONU. Uma animação produzida pelo Instituto de Desenvolvimento e Direitos Humanos explica o funcionamento da RPU. Atualmente o Brasil está fechando seu 3º ciclo da RPU e indo para o início da primeira fase do 4º ciclo.
Sobre o Coletivo RPU - Brasil
O Coletivo RPU - Brasil é uma coalizão composta por 31 entidades, redes e coletivos da sociedade civil brasileira que tem por objetivo acompanhar a implementação das recomendações da RPU, além de disseminar informação sobre o mecanismo no país, e de cobrar transparência do Estado Brasileiro para ampliar a participação social. O grupo foi criado em 2017, logo após a passagem do Brasil pelo 3º ciclo da RPU.
As informações são disponibilizadas na Plataforma RPU Brasil, ferramenta online para consulta e avaliação das recomendações recebidas pelo Estado Brasileiro, de forma prática e acessível para que possa ser utilizada por todos/as os/as defensores/as de direitos humanos brasileiros/as e disseminar informações sobre o monitoramento das recomendações, aumentando a participação da sociedade civil brasileira no mecanismo. Saiba mais em: plataformarpu.org.br.
Atualmente, as organizações que compõem o Coletivo RPU são: Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT); Observatório Nacional de Políticas de AIDS (ABIA); Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB); Articulação para o Monitoramento dos Direitos Humanos (AMDH); Artigo 19; Campanha Nacional pelo Direito à Educação; Centro de Direitos Economicos e Sociais (CDES); Centro de Educação e Assessoramento Popular (CEAP); Conselho Indigenista Missionário (CIMI); Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM); Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais (CONAQ); Conectas Direitos Humanos; FIAN Brasil; Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI); Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (GAJOP); Geledés; Gestos; Instituto de Desenvolvimento e Direitos Humanos (IDDH); Iepé - Instituto de Pesquisa e Formação Indígena; Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH); Instituto Nacional de Estudos Socioeconomicos (INESC); Intervozes; Justiça Global; Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB); Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH); Movimento Nacional de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (MORHAN); Plataforma DHESCA; Rede de Cooperação Amazônica (RCA); Terra de Direitos; Themis e UNISOL - Central de Cooperativas e Empreendimentos Solidários do Brasil.
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