10.04.2020

Ciência e tecnologia salvam vidas. Mas ainda falta reconhecimento

O flagrante descaso oficial, celebrado por autoridades com ataques e desvalorização da ciência e das universidades antes da eclosão da crise do novo coronavírus, mostrou-se desprezível diante da atuação da comunidade científica brasileira.

 

 

Mesmo na defensiva, em função da crise na economia e o desdém do governo que desacredita na ciência, pesquisadores no Brasil somaram-se aos esforços dos cientistas do mundo todo e superaram-se para identificar rapidamente as ameaças da Covid-19 e para desenvolver mecanismos de proteção da população, voltados para mitigar os efeitos devastadores do vírus.

 

Diante da maior crise que a humanidade enfrenta desde a Segunda Guerra Mundial, o desafio de abrir um diálogo sobre o futuro da ciência e tecnologia, ou C&T, enfrenta pelo menos um grande obstáculo: a margem de erro tende a mostrar-se superior ao razoável. Isso porque a crise ainda está em curso e o futuro depende de seus resultados, Mesmo com esse risco, é importante assentar algumas referências, pois o futuro, acreditamos, já está sendo construído.

Nosso ponto de partida é que as grandes crises moldam a história dos países, que são obrigados a desenvolver sua recuperação a partir do resultado das estratégias escolhidas e das chagas expostas à sociedade e que permanecem abertas por um longo período. Os impactos da covid-19, para além do rastro de morte e sofrimento no curto prazo, exigirão mudanças profundas na atividade econômica, no universo da política, na educação, na C&T e na cultura. O desafio estará na superação dos enormes obstáculos, alguns antigos, muitos novos, para que a sociedade retome seu curso de normalidade. Ou, melhor, do que deverá ser chamado de o novo normal, já que as sequelas da crise deixarão o mundo permanentemente diferente do que foi.

A súbita inversão de papéis, de regras e leis gerou uma imprevista desorganização estrutural, o que coloca a necessidade de se refazer a engenharia molecular das sociedades, de seus negócios, da política e da vida, para que seu DNA seja mais humano, seguro e civilizado.

À C&T caberá a disputa por um lugar especial nesse cenário. No mundo todo. E, em especial, em países emergentes como o Brasil. Nestes, C&T não contam com a valorização devida, se debatem em meio aos cortes de verba e padecem de não serem tomadas como prioridade nacional, tanto do ponto de vista político como social. Um paradoxo, claro. Pois mesmo na defensiva, dado o desdém de governos que desacreditam na ciência, ou como resultado da marcha lenta das economias, pesquisadores no mundo todo superaram-se para identificar rapidamente as ameaças do novo coronavírus, para desenvolver mecanismos de proteção que conseguem, a duras penas, mitigar seus efeitos devastadores.

No Brasil, a pesquisa científica projetou-se como uma das primeiras no mundo a sequenciar o genoma do vírus e a replicá-lo em laboratório, o que permitiu a realização de testes em todo o país. Redes de pesquisa foram criadas. As universidades, públicas e privadas, se mobilizaram em todos os campos e áreas. Para além da assistência, instituições hospitalares agiram em parceria com o Ministério da Saúde e as secretarias estaduais para os testes e a pesquisa. Institutos nacionais estaduais e municipais, a exemplo do CNPEM (Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais), se concentraram na busca de novos medicamentos. Agências de fomento, como o CNPq, a Finep, Embrapii, Fapesp[1], associaram-se a entidades de fomento ou que sustentam centros de inovação, como o Senai, e anunciaram programas de emergência voltados para encontrar soluções em todos os âmbitos da crise: tratamento de saúde, gestão, controle de casos, previsão de casos, equipamentos e medicamentos. Desse ponto de vista, a mobilização nacional foi ampla e solidária, similar à ocorrida em grande parte dos países assolados pela covid-19. E a resposta dos pesquisadores brasileiros mostrou-se mais do que relevante, apesar das fragilidades do sistema de C&T, que só foram superadas pela rápida resposta das universidades e da comunidade científica.

O flagrante descaso oficial, celebrado por autoridades com ataques e desvalorização da ciência e das universidades antes da eclosão da crise do novo coronavírus, mostrou-se desprezível diante da atuação da comunidade científica brasileira. Ao expandir suas atividades e multiplicar o número de iniciativas voltadas para encontrar solução para os mais diferentes problemas colocados pela covid-19, os mais distintos pesquisadores se articularam na saúde, mas também nas engenharias, na física, na química, biologia e em todas as áreas de humanidades, da economia à sociologia, da ciência política à psicologia.

Em pouco mais de dois meses, desde o início da mobilização no Brasil, os esforços se basearam em resultados, tanto na assistência médica, cujos profissionais mostraram seu valor e o do Sistema Único de Saúde (SUS), como na fabricação de máscaras, aparelhos respiratórios, testes com drogas antigas e novas, assim como no mapeamento da crise e monitoramento da eficácia das políticas públicas. A forte disposição demonstrada pela comunidade acadêmica, centros de pesquisa e universidades foi fundamental para afastar o pânico e dar credibilidade às medidas de distanciamento físico promovidas por vários governos estaduais e municipais, em aberto contraste com o comportamento errático e equivocado originado na Presidência da República, muitas vezes em franca oposição às orientações do próprio Ministério da Saúde.

A velocidade da resposta permite entrever o enorme potencial que o Brasil possui para a geração de conhecimento novo e comprometido com o desenvolvimento do país. Disposição semelhante também percorreu o universo de startups, marcado pela busca e propagação de soluções para a crise. Mesmo que em um grau menor, preocupações nesse sentido também estiveram presentes em médias e grandes empresas. Embora em número reduzido, várias se engajaram na fabricação de equipamentos e instrumentos de segurança, manutenção e mesmo na fabricação de respiradores. Mais importante ainda, o Brasil pode assistir ao nascimento de um inédito movimento de grandes e médias empresas que se comprometeram a não demitir seus funcionários durante a crise.

SE O FUTURO FOR TOMADO COMO AMEAÇA, A CIÊNCIA PERMANECERÁ ETERNA COADJUVANTE, QUANDO A REESTRUTURAÇÃO DO PAÍS PEDE UMA CIÊNCIA PROTAGONISTA

Comportamento semelhante se observou em várias agências de fomento, que anunciaram programas e editais de apoio à busca de soluções para a covid-19. Mesmo assim, é fundamental que as agências incorporem rapidamente o senso de urgência que a crise exige. Dados divulgados pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) mostram que as principais agências de fomento no Brasil anunciaram editais que, em seu conjunto, mostram-se ainda muito tímidos quando comparados ao investimento de emergência em países como a China, Índia, Estados Unidos, Canadá, Reino Unido e Alemanha.

Essa breve comparação não se presta apenas para afirmar que o dispêndio brasileiro é menor do que outros países, mas para reforçar a necessidade emergencial das atividades de apoio à pesquisa. A leitura dos editais brasileiros mostra que seus objetivos nem sempre estão sintonizados com as prioridades de pesquisa da OMS (Organização Mundial da Saúde) e/ou dos centros reconhecidamente mais dinâmicos e que, em grande parte, foram desenvolvidos isoladamente, sem se orientar por uma coordenação nacional de esforços.

Como as condições são de exceção e o objetivo é salvar vidas, a atuação das agências deve se pautar pela excepcionalidade. Nesse sentido, seguem algumas propostas que podem fazer a diferença no apoio à pesquisa.

1. Modificar transitoriamente os processos de inscrição, avaliação e prestação de contas de projetos de pesquisa, seja de empresas, seja da academia.

2. Simplificar os procedimentos regimentais, de modo a acelerar o depósito, a aprovação e a prestação de contas das propostas.

3. Concentrar a avaliação dos projetos na (i) capacidade do pesquisador principal; (ii) na composição de sua equipe; (iii) na eficiência e idoneidade da instituição de origem; (iii) no histórico de cumprimento de compromissos de projetos anteriores.

4. A maior parte dos países avançados possuem aparatos legais que dão conforto aos seus governos para licenciar ou se utilizar de patentes de interesse público. Esse também é um caminho que o Brasil deveria seguir e que permitiria agilizar a fabricação de equipamentos que, em tempos normais, teria referência no sistema patentário internacional.

5. Facilitar ainda mais o entrosamento e a cooperação internacional. Este é o momento de o país dar um salto na participação nas principais redes de pesquisa mundial. As agências de fomento, em conjunto com as universidades, podem estruturar sistemas de prospecção das redes mais dinâmicas e competentes do universo da ciência e abrir caminho para a associação de pesquisadores e instituições brasileiras, sejam as universitárias, sejam as empresariais.

6. Abrir diálogo imediato entre as principais universidades e as empresas de modo a viabilizar o desenvolvimento conjunto de soluções. Protótipos e projetos novos precisam sair dos laboratórios em linha com a produção industrial. Sem essa articulação, corre-se o risco de uma ótima ideia se mostrar ineficiente quando confrontada com a realidade empresarial que exige rigor, escala e malha de fornecedores para ganhar realidade.

7. O momento exige rapidez e utilização de toda a capacidade científica disponível, de modo a se alcançar resultados no curto prazo. Para isso, é fundamental que sejam formados conselhos de universidades e de empresas e que a coordenação das atividades seja uma realidade.

Certamente, nenhuma das propostas acima é de fácil realização. Mas são propostas necessárias para colocar a C&T no Brasil em sintonia com o que se faz de mais avançado no mundo e que permite ao país exercitar plenamente suas responsabilidades.

A qualidade do engajamento dos pesquisadores em todo o mundo e também no Brasil, cria condições novas para o reconhecimento dos méritos da atividade científica e de sua importância para a vida das pessoas. Acredito, por isso, que C&T terão condições de abrir um novo capítulo em sua história após a maré do vírus. Nada será tranquilo, porém, dado que teremos um mundo e o nosso país mais pobres, com Estados exauridos, provavelmente marcados pela inflação, desemprego e com as chagas seculares da pobreza e das desigualdades sociais.

As dores do parto de um novo ambiente para C&T no Brasil, com financiamento adequado e estabilidade, capaz de formar novas e vibrantes gerações de cientistas, dependem das respostas a serem formuladas e incorporadas na sociedade. Trata-se de uma disputa em aberto, que depende muito, ainda que não exclusivamente, da comunidade científica. 

No Brasil, a crise é na saúde, na economia e na política. Contém ainda viés de alta para a eclosão de uma crise social, gerada pela compressão da atividade econômica, pela falta de emprego, de renda, pela desorganização da economia e pelo esgotamento da capacidade do estado. 

Como será a repercussão desse novo ambiente nas universidades, nos centros de pesquisa, na comunidade científica?

Os caminhos tradicionais de recuperação estarão vedados ou repletos de obstáculos ainda desconhecidos. Se o futuro for tomado como ameaça, a ciência permanecerá eterna coadjuvante, quando a reestruturação do país pede uma ciência protagonista. A afirmação do necessário trabalho dos profissionais de C&T não poderá se dar em contraposição às necessidades de milhões de brasileiros em busca de uma vida mais decente, que nunca tiveram antes do vírus, que piorou durante a crise, e que não há a menor garantia de que vai melhorar após a onda destruidora atual.

Trabalho, emprego e renda estarão no centro da vida nacional. No enfrentamento da crise, revistas científicas, blogs e podcasts transmitiram o pronunciamento dos cientistas e profissionais da saúde e deram confiança à população e credibilidade a decisões excepcionais. O pós-crise espera posicionamento semelhante de milhares de cientistas que agora vão se debruçar para repensar nossa educação, o sistema de saúde, o modo de trabalhar e de viver em nosso país.

A ciência que investiga e joga luz no irreconhecível precisa ocupar um lugar de destaque na sociedade, por seus méritos, dedicação e capacidade de preparar caminhos mais saudáveis para a humanidade.

Para se avançar nessa direção, é fundamental que os pesquisadores do mundo todo considerem os resultados de sua atuação como um antídoto para afastar o medo e como estímulo para ampliar a ousadia necessária para mudar o mundo para melhor.

É importante lembrar que o Estado brasileiro, tido por lento, burocrático e travado, mostrou-se imprescindível para manter viva a sociedade. Sua atuação mostrou a impropriedade do roteiro ideológico que procura levar a sociedade a ser regida apenas pela dinâmica dos mercados. A crise atual deixa claro que temos pela frente muito mais do que um retorno à estabilidade anterior, momentaneamente perdida por conta de um vírus. O que nos aguarda é um esforço para redesenhar a nossa sociedade, que hoje sangra em seus fundamentos, inclusive nos democráticos. E nada mais contemporâneo e avançado do que colocar como vetor dessa reflexão a dignidade humana, que o Brasil vem negando a milhões de brasileiros. 

Um novo sistema nacional de C&T deve ser estruturado no país. A comunidade de pesquisadores de todos os cantos do país precisa se reunir, debater e propor um novo modo de fazer ciência no Brasil. Um Encontro Nacional de Cientistas, de todas as áreas e regiões, pode dar voz e unificar esse esforço. Para construir em nosso país um sistema conectado com o mundo e sustentado por uma educação de qualidade. O mundo do conhecimento é chave para distanciar o Brasil do atraso e aproximá-lo da civilização.

 

Glauco Arbixé professor titular da USP, coordenador do Observatório da Inovação do Instituto de Estudos Avançados (IEA). Ex-presidente do Ipea e da Finep.


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