22.04.2020

Como a crise do coronavírus expõe os desafios geracionais

A condição de vulnerabilidade social, econômica e política torna as juventudes um dos grupos mais afetados pela crise

A condição de vulnerabilidade social, econômica e política torna as juventudes um dos grupos mais afetados pela crise 

 

No fim de janeiro de 2020 ocorreram os primeiros casos de pessoas contaminadas pela covid-19 no Brasil. Desde então, postagens nas mídias sociais defendem a tese da natureza democrática do vírus, ressaltando que ele acomete a todos sem preconceito. O avanço da pandemia no país mostra, no entanto, que essa ideia não condiz com a realidade. Além dos grupos mais afeitos ao risco de desenvolver a doença e chegar a óbito (idosos, pessoas com deficiências imunológicas e respiratórias, dentre outros), vemos que fragilidades socioeconômicas são um forte componente para sua disseminação em larga escala. Isto é, o vírus e a covid-19 afetam de maneira distinta os variados grupos sociais. Por essas e outras razões, vale uma análise mais detida sobre seus possíveis impactos em um dos segmentos da sociedade brasileira pouco analisado: a juventude, ou melhor as juventudes. 

Na medida que não compõem o segmento prioritário do grupo de risco do ponto de vista da saúde — apesar do crescente número de óbitos entre jovens em diversos países —, muitas análises não têm levado em conta os efeitos desta pandemia sobre os jovens. Contudo, a condição de vulnerabilidade social, econômica e política torna as juventudes um dos grupos mais afetados pela crise. Se os efeitos no presente já se mostram devastadores, é importante considerar ainda as consequências que estão por vir. As dimensões da crise nos levam a crer que teremos anos, ou até mesmo décadas, de reconstrução pela frente. Nesse contexto, tanto no médio como no longo prazo, os jovens estão entre aqueles que sofrerão mais e por mais tempo. 

De acordo com o Estatuto da Juventude (Lei n. 12.852/2013) são jovens as pessoas entre 15 e 29 anos de idade. Segundo dados do IBGE de 2017, elas somam 48,5 milhões de brasileiros, 23,4% do total da população. São mulheres, homens, brancos, pretos, pardos, indígenas e quilombolas, LGBT, religiosos e ateus, da cidade e do campo, das florestas e das águas, com terra e sem terra, estudantes, trabalhadores, subempregados e desempregados. 

A pluralidade que caracteriza a juventude contrasta com o tratamento por ela recebido no âmbito das políticas públicas. Até muito recentemente as agendas governamentais dedicadas à juventude eram circunscritas a um conjunto restrito de ações, focado sobretudo nas áreas educacional e disciplinar. 

No Brasil, o ano de 2005 inaugurou a agenda das políticas públicas de juventude no governo federal, com a criação da SNJ (Secretaria Nacional de Juventude), do Conjuve (Conselho Nacional de Juventude) e do ProJovem (Programa Nacional de Inclusão de Jovens). Em 2010, foi aprovada a Emenda Constitucional 65, que inseriu na Constituição Federal o termo jovem; e em 2013 foi sancionado o Estatuto da Juventude. Nesse período, a juventude brasileira foi também objeto de políticas nas áreas de cultura, saúde, segurança, trabalho e emprego, agricultura familiar e reforma agrária, igualdade racial, promoção dos direitos das mulheres, dentre outras. Merecem destaque as conquistas educacionais. Entre 2004 e 2014, cresceu de 32,9% para 58,5% o acesso de jovens de 18 a 24 anos ao ensino superior. Regionalmente, o maior crescimento ocorreu no Nordeste (16,4% para 45,5%). Já considerando a variável raça, observou-se aumento de 16,6% para 45,5% entre negros e de 47,2% para 71,4% entre brancos no mesmo período. Ressalta-se ainda expressiva experimentação da participação social entre as políticas públicas para a juventude. O Conjuve foi o primeiro conselho a ter paridade entre membros do governo e da sociedade civil e as três conferências nacionais de juventude (2008, 2011 e 2015) mobilizaram mais de 1,5 milhão de jovens em todo o país. Os esforços no governo federal incentivaram a elaboração de políticas públicas para a juventude e a criação de conselhos de juventude também nos estados e municípios. 

Nos últimos anos, contudo, muitas das políticas e ações foram extintas ou esvaziadas. A SNJ tornou-se uma secretaria sem expressão do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Além disso, interrompeu-se o calendário de realização das conferências nacionais de juventude, previstas para ocorrer a cada quatro anos, e uma série de outras políticas voltadas à juventude em outras pastas governamentais encontra-se ameaçada. A extinção do Pronera (Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária), do Programa Brasileiro de AIDS/HIV e o do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, que atuava nos presídios, são alguns dos exemplos de ações que impactam diretamente a juventude brasileira. Por conta da deterioração do mercado de trabalho, entre 2014 e 2019 a juventude perdeu 14% da renda proveniente do trabalho, percentual que chegou a 24% entre os mais pobres e 51% entre os analfabetos. Ressaltamos ainda os constantes ataques à ciência e ao pensamento crítico e a defesa oficial de supostas Escolas Sem Partido, que afetam diretamente o presente e o futuro da juventude e da sociedade brasileira como um todo. Todas as áreas e ações governamentais foram fortemente afetadas pela Emenda Constitucional 95, que impôs o draconiano “teto de gastos” no orçamento brasileiro pelos próximos 20 anos. 

A covid-19 desencadeou uma crise sem proporções no mundo e no Brasil. Aqui o governo adotou postura que faz jus à letra dos Racionais, que diz “o ser humano é descartável no Brasil”. Porém, nem todos.

UM DOS EFEITOS DA CRISE TEM SIDO ESCANCARAR OS PRIVILÉGIOS E AS DESIGUALDADES QUE PERMEIAM NOSSA SOCIEDADE 

 As declarações e medidas tomadas pelo presidente Jair Bolsonaro indicam que são descartáveis os que sobrevivem a tudo, “pula[m] no esgoto, nada[m], mergulha[m] e não acontece nada com ele[s]”. Esses “não podem parar”, precisam trabalhar, movimentar a economia, manter as atividades funcionando — e as taxas de lucros dos empresários, vendedores de hambúrguer, investidores da bolsa de valores e banqueiros. Na prática, há uma divisão bastante evidente entre os que podem permanecer em casa e seguir uma rotina de trabalho e lazer e aqueles que precisam sair para trabalhar e que não possuem condições acolhedoras em seus lares. Para esses últimos, a medida mais urgente é o pagamento da Renda Emergencial Básica, aprovada pelo Congresso Nacional no final de março. 

Com as aulas presenciais suspensas, muitos estudantes deixaram de se alimentar nos refeitórios e restaurantes universitários, razão pela qual podem incorrer em situação insegurança alimentar. Por isso, é urgente a retomada das compras institucionais do PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) e do PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar), e a distribuição de cestas básicas para pessoas em situação de insegurança alimentar. Tais medidas atendem as necessidades imediatas da população das cidades, ao mesmo tempo em que garantem renda para os trabalhadores da agricultura familiar. Vale lembrar que o Brasil saiu do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (a FAO) em 2014, conquista que se deve em grande parte às políticas de desenvolvimento territorial e redução da pobreza rural. 

No que diz respeito ao mercado de trabalho, ressalta-se a alta taxa de participação juvenil na PEA (população economicamente ativa brasileira) — quantidade de pessoas em idade ativa que trabalha ou está procurando emprego —, a segunda maior da América Latina, atrás somente do Paraguai. Boa parte desses jovens encontra-se desempregada.  A taxa de desemprego entre eles é superior a 20% (chegou a 25% em 2017) e cerca de 12% para o conjunto da população. Da mesma forma, é maior a taxa de rotatividade dos jovens no mercado de trabalho. Dados de 2013 indicavam que a taxa de separação (trabalhadores que se desligam do emprego ao longo de um ano) entre os jovens era de 72,4% e de 41,3% entre os trabalhadores mais velhos. Igualmente, a juventude constitui maioria entre os trabalhadores informais — e quanto menor a idade, maior a taxa de informalidade. Atualmente, quase 4 milhões de brasileiros auferem renda por atividades associadas aos aplicativos de serviços. Quantos não são os jovens motoristas de Uber, ciclistas do Rappi ou iFood, vendedoras de bolo de pote? 

A ampliação do seguro-desemprego e a retomada da política de valorização do salário mínimo são algumas das ações necessárias para garantir renda e dignidade a esses jovens, ao mesmo tempo em que contribuem para a dinamização da economia. Para contemplar os trabalhadores informais, dentre os quais os que se dedicam aos trabalhos via aplicativos, é preciso ainda que as empresas se comprometam a pagar benefícios e direitos trabalhistas — o que dificilmente ocorrerá sem que o Estado se prontifique a regular esses novos mercados. Já no período da reconstrução, deve-se priorizar a contratação de jovens nas iniciativas públicas e privadas do pós-crise, por meio de processos que envolvam qualificação técnica e geração de renda. 

No que tange os jovens estudantes, são necessárias medidas que garantam as condições de permanência nos cursos. No âmbito da educação pública, por exemplo, destacamos a importância da revogação da Portaria 34 (março/2020) do Ministério da Educação , que cortou milhares de bolsas de pós-graduação em universidades de todo o país; bem como o fim da suspensão orçamentária de 40% dos recursos do PNAES. Com relação ao ensino privado, é crucial que os estudantes não incorram em multas ou penalidades relativas às mensalidades ou dívidas do Fundo de Financiamento Estudantil (o Fies e o P-Fies). Para aqueles diretamente afetados pela crise, seja por redução de salário ou perda do emprego, impõe-se medida de renegociação ou parcelamento de mensalidades. Além disso, faz-se necessária a redução das mensalidades das universidades privadas, sobretudo considerando que as aulas estão ocorrendo em formato de (EAD) educação a distância. Por fim, destaca-se a necessidade de ampliação e diversificação de cursos, técnicos e universitários, que tenham no horizonte temas ligados ao desenvolvimento sustentável, haja vista a urgência de reorientação do modelo de desenvolvimento daqui para frente. 

Outro tema fundamental da vida das juventudes, sobretudo da juventude negra e periférica, tem a ver com as taxas de violência e encarceramento. São de fato alarmantes as estatísticas de homicídio da população jovem negra, um verdadeiro genocídio. Dados do Atlas da Violência de 2019 mostram que das mais de 65 mil mortes violentas no Brasil — aumento de 37,5% entre 2007 e 2017 — 35.783 (54,5%) foram de jovens,  sendo 94,4% homens. Considerando o conjunto da população, a desigualdade racial é gritante: 75,5% das pessoas assassinadas no Brasil são pretas ou pardas. 

Da população carcerária nota-se que 54% tinha idade entre 18 e 29 anos em 2017,  segundo dados do Ministério da Justiça. A propagação do coronavírus coloca suas vidas em perigo, de modo que é urgente a adoção de medidas de prevenção nos presídios. É também necessária a ampliação dos mutirões carcerários do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), para examinar a condição dos mais de 200 mil presos provisórios, que chegam a 30% da população carcerária nacional. 

As desigualdades e a violência de gênero constituem outro aspecto sensível entre as juventudes. As jovens mulheres são, via de regra, pior remuneradas e mais suscetíveis ao desemprego. São também particularmente sobrecarregadas com atividades de cuidado e reprodução social — fundamentais para o funcionamento da economia, porém não reconhecidas como trabalho. Igualmente grave é a situação da violência doméstica. Os números de violência de gênero e feminicídios aumentaram sobremaneira no país nos últimos anos. Entre 2007 e 2017 registrou-se aumento de 20,7% na taxa nacional de homicídios de mulheres. O período de isolamento agrava esta situação, conforme evidenciam dados recentes sobre episódios de violência doméstica no Brasil e em outros países. Nesse sentido, é fundamental que os canais de assistência às vítimas continuem funcionando, adaptados à dinâmica do isolamento, por meio de linhas diretas digitais e que essas sejam amplamente divulgadas. 

De modo geral, um dos efeitos da crise tem sido escancarar os privilégios e as desigualdades que permeiam nossa sociedade e expor as vulnerabilidades do mercado de trabalho, sobretudo em face das mudanças dos últimos anos. Nesse sentido, vemos a crise desencadeada pela covid-19 como reflexo e decorrência de desigualdades históricas. A condição de “normalidade” para a qual alguns querem retornar é, de fato, feita de relações de poder essencialmente desiguais, injustas e desumanas. Um dos sintomas das anomalias do presente é o aumento de problemas associados à saúde mental. Vale lembrar que o suicídio foi a segunda causa de morte de jovens no mundo em 2016, sendo 79% deles em países de renda baixa e média, dentre os quais o Brasil. 

Por conta disso, medidas de combate à crise provocada pela covid-19 serão insuficientes e ineficazes se não levarem em conta as dimensões estruturais dos problemas e as razões de por que certos segmentos são mais afetados que outros. No Brasil e no mundo são poucos os dados e análises dedicados à juventude. Todos eles, no entanto, indicam as vulnerabilidades socioeconômicas e políticas desse segmento social. Apontam também a necessidade de perspectivas integradas, “fora das caixinhas”, que reconheçam e valorizem a pluralidade das juventudes. A nosso ver, as proporções da crise colocam em xeque o modelo vigente e exigem, igualmente, medidas robustas, com ações urgentes e prospectivas. Porque os desafios estavam longe de ser conquistados antes da crise, acreditamos que este momento pode e deve ser tomado como ponto de inflexão, devendo suscitar profunda reflexão e elaboração sobre nossa forma de organização social, as desigualdades entre grupos da população e as relações entre seres humanos e o planeta Terra.  

Luiza Dulci é economista formada pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), mestre em sociologia pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e doutoranda em Ciências Sociais, desenvolvimento e agricultura na UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro), com estágio na Universidade de Denver/EUA. Foi assessora de juventude rural do Ministério do Desenvolvimento Agrário (2015-2016) e atualmente integra a Secretaria Nacional Agrária do PT e o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo. 


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