16.04.2020

Covid-19: pensamento complexo para problemas complexos

Neste momento, fica óbvio que não há espaço para amadorismo na gestão pública. Não há espaço para processos decisórios baseados em intuições.

 

Neste momento, fica óbvio que não há espaço para amadorismo na gestão pública. Não há espaço para processos decisórios baseados em intuições.

 

O mundo ainda não tem ideia de quais serão os impactos da pandemia da covid-19 no futuro. Ao lado de lamentar a perda de milhares de vidas humanas — consequência de valor inestimável — a sociedade brasileira será confrontada com o imperativo moral de rever o modo como tem tratado a gestão pública. Aos dirigentes e técnicos dos governos, das fundações, das organizações da sociedade civil e das universidades, caberá refletir e mudar a produção e a implementação de políticas e serviços públicos com vistas a que as cidades, estados e o país ampliem a sua capacidade de enfrentar adversidades e de assegurar direitos fundamentais. As árduas conquistas da Constituição Federal de 1988 não podem ser mera bravata.

O papel fundamental que o Estado desempenha no enfrentamento dessa epidemia é público e notório. Os órgãos de imprensa cumprem função de disseminar informações e notícias, mas a população está interessada e atenta ao que o Estado e os dirigentes públicos oferecem de informação e orientação. São os governos, e não o setor privado, que pautam as decisões em situações caóticas. É por meio dos dirigentes de órgãos públicos e das agências multilaterais que a população é informada sobre como agir. Lideranças com capacidade de escutar e tomar decisões com base em evidências, com moderação e sensibilidade são ativos essenciais em situações como a que estamos vivendo. Informação e gestão de alto nível é tudo de que a população precisa.

Neste momento, fica óbvio que não há espaço para amadorismo na gestão pública. Não há espaço para processos decisórios baseados em intuições. “Eu acho que” é o oposto do que um dirigente público qualificado deveria declarar. Cultivar a postura de que “nada de importante está acontecendo”, quando tudo ao redor mostra exatamente o contrário, equivale a negligenciar o bem-estar da população. Um presidente da República não tem o direito de governar sem se apoiar na ciência e na lei, baseando seus atos públicos em convicções pessoais. O mesmo vale para governadores, prefeitos e para os servidores do Judiciário e do Legislativo.

No momento em que o Brasil enfrenta a pior crise de saúde pública do último século e, tudo indica, a mais severa crise socioeconômica após a Segunda Grande Guerra, a sociedade não pode escutar orientações do tipo: “Olha, vamos passar por isso, a chuva está vindo aí, você vai se molhar. Agora, se você colocar uma capinha aqui, tudo bem, passa”. Foi dessa forma que o presidente da República orientou a população durante uma entrevista de televisão, no dia 20 de março de 2020. Baseado em quê um chefe de estado afirma que pequenos cuidados (uma capinha) serão suficientes para enfrentar uma tempestade que já matou mais de 50 mil pessoas no planeta?

Além de combater com veemência postura tão irresponsável, é urgente instalar na gestão do Estado processos que vinculem as decisões e a legislação à análise de dados e evidências. Não podemos mais tolerar práticas de gestão pública sem procedimentos que avaliem suas decisões e que a elas confiram transparência. Por que deste modo? Quais as consequências dessa escolha? Esse é o método mais eficaz de operar? Há experiências que sustentam essa decisão? Essa é a maneira mais inteligente de se utilizar um recurso?

NÃO PRECISAMOS DE TRAGÉDIAS NA SAÚDE PÚBLICA PARA PROVAR A NECESSIDADE DE PROFISSIONALIZAÇÃO DA GESTÃO PÚBLICA

Perguntas como essas podem qualificar o debate, fomentar o desenvolvimento de pesquisas e avaliações, e favorecer o uso de evidências que justifiquem a tomada de decisão. As evidências surgem a partir de avaliações de políticas e projetos. Surgem a partir das pesquisas científicas de curto, médio e longo prazos. Surgem a partir da observação de comportamentos baseados em experimentos. E surgem do estímulo a que toda a sociedade pense a respeito de seus modos de vida, a fim de fazer escolhas melhores para o futuro. Não há país forte sem boa gestão pública e sem sociedade civil informada.

Nosso sistema de pensamento utiliza centenas de atalhos para tomar decisões. Esses atalhos, conhecidos pelos cientistas como heurísticas, viabilizam o processamento de informações de maneira rápida e intuitiva. Esse percurso viabiliza a nossa vida em sociedade já que, frente a todas as decisões que tomamos cotidianamente, não é possível parar, mapear alternativas, ponderar cada uma das possibilidades, implementar, monitorar e avaliar todas as decisões que tomamos. Tendo em vista que elas são muitas e variam das mais simples às mais complexas, criamos atalhos para acelerar o processo decisório.

No entanto, o que muitos gestores não percebem é que a heurística deve exatamente ser evitada quando enfrentam problemas complexos. Ao não se darem conta de que somos levados pelo nosso sistema de pensamento a tomar decisões rápidas e pouco reflexivas, os gestores costumam reproduzir duas tendências conhecidas dos estudiosos do comportamento humano: o otimismo excessivo e o excesso de confiança. No primeiro caso, somos excessivamente otimistas sobre os resultados das ações que planejamos, superestimando a probabilidade de eventos positivos e subestimando a ocorrência de eventos negativos. No segundo, superestimamos nossas habilidades quando comparadas às das outras pessoas, falseando positivamente nossa capacidade para alcançar resultados.

Em outras palavras, por ter de processar dezenas de informações ao mesmo tempo na vida cotidiana, passamos a acreditar que somos excelentes gestores, mesmo que nenhuma evidência aponte nessa direção. Essas duas tendências analíticas (“action-oriented biases”) afetam a forma como os gestores se comportam em processos decisórios complexos. É nesses casos que informações científicas e sistemas de monitoramento e avaliação são relegados a um segundo plano, uma vez que as decisões passam a ser tomadas com base no impulso, na intuição ou em experiências que teriam dado certo no passado.

Ainda que o estudo do comportamento humano tenha limites e controvérsias, como toda boa ciência, apoiar a tomada de decisão com base em evidências é o modo mais adequado para fortalecermos a gestão do Estado, a fim de ampliar as suas capacidades para enfrentar problemas complexos. Não precisamos de tragédias na saúde pública para provar a necessidade de profissionalização da gestão pública. Mas, uma vez que fomos golpeados pela pandemia da covid-19, não nos resta outra possibilidade além de aprender com os erros e aperfeiçoar a gestão do Estado.

 

Cassio França é doutor em administração pública e governo pela FGV-SP (Fundação Getulio Vargas), pesquisador do CEAPG (Centro de Estudos em Administração e Governo) da FGV Eaesp (Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas) e pesquisador visitante da London School of Economics and Political Science. Foi Diretor de Projetos da Fundação Friedrich Ebert no Brasil de 2001 a 2011.


Rogério Silva é doutor em saúde pública pela USP (Universidade de São Paulo), psicanalista pelo CEP (Centro de Estudos Psicanalíticos) e sócio da Pacto Organizações Regenerativa.


Ursula Dias Peres é professora doutora da Each/USP (Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo) no curso de gestão de políticas públicas, pesquisadora do CEM/USP (Centro de Estudos da Metrópole da Universidade de São Paulo) e pesquisadora visitante no King's College London. Foi secretária-adjunta de Planejamento, Orçamento e Gestão do município de São Paulo.

*Este texto foi publicado pelo Nexo Jornal


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