Em entrevista, Martin Schulz, presidente da FES, analisa as relações UE-América Latina, confira.
“Como líder do grupo socialista no Parlamento Europeu e como Presidente do Parlamento Europeu, salientei repetidas vezes que não há região neste planeta que tenha tantas semelhanças com a Europa nos âmbitos cultural, econômico e político como a América Central e do Sul”, afirmou Schulz
Editada por Alice Taylor, e traduzida por Eduardo SzklarsPublicada originalmente em Euractiv
Enquanto a União Europeia (UE) procura estreitar os laços com as democracias em todo o mundo em meio à guerra na Ucrânia, uma região vem sendo amplamente negligenciada até agora, apesar de seu amplo potencial de parceria: a América Latina.
Um novo estudo da Friedrich-Ebert-Stiftung (FES), que entrevistou 12.000 pessoas em 10 países da América Latina, concluiu que os latino-americanos veem a União Europeia como seu parceiro preferido, e há uma sobreposição significativa quando se trata de valores como direitos humanos e multilateralismo. EURACTIV conversou com o presidente da FES, Martin Schulz, sobre os resultados da pesquisa e o que eles significam para a União Europeia.
Martin Schulz é presidente da Friedrich Ebert Stiftung. Entre 2012 e 2017, foi presidente do Parlamento Europeu antes de ser escolhido como o principal candidato dos social-democratas nas eleições federais alemãs de 2017.
DESTAQUES
Apesar de seu amplo potencial como um parceiro próximo em tempos de crise, a América Latina ainda é amplamente negligenciada na UE e muitas vezes retratada como uma continuação da política externa espanhola ou portuguesa.A guerra de agressão russa levou alguns Estados latino-americanos a se afastarem da UE quando se trata de sua abordagem em relação à Rússia, pois as sanções seriam muito custosas para eles.A Europa tem que fazer mais para ajudar economicamente a região a evitar o agravamento das divisões sociais e precisa intensificar a cooperação econômica com a região em pé de igualdade.A UE tem uma vantagem sobre a China na região porque a população reconhece a UE como um parceiro preferencial. Mas a UE deve agir agora para usar isso a seu favor.
O estudo mostra claramente um potencial nas relações UE-América Latina. Por que a UE vem negligenciando uma região tão importante há tanto tempo?
Isso é algo completamente inexplicável contra o qual luto há muitos anos. Como líder do grupo socialista no Parlamento Europeu e como Presidente do Parlamento Europeu, salientei repetidas vezes que não há região neste planeta que tenha tantas semelhanças com a Europa nos âmbitos cultural, econômico e político como América Central e do Sul. Isto não se limita à perspectiva social-democrata, mas a toda a orientação básica desses países. E não deve ser subestimado.
Se observarmos os acontecimentos do último ano e meio, especialmente no que diz respeito às eleições no Chile, na Colômbia e possivelmente também no Brasil, os governos progressistas da Europa, em particular, fariam muito bem em se esforçar de forma mais significativa para estender os braços à América Latina.
Há duas razões principais para o descaso das relações com a América Latina: uma é que Estados membros individuais da UE, como a República Federal da Alemanha, escolhem os países economicamente mais interessantes e depois se concentram sobretudo no âmbito bilateral.
Ao mesmo tempo, muitos veem a política latino-americana como uma continuação das relações exteriores hispano-portuguesas – apenas com uma dimensão europeia. No meu entendimento, esses são os principais fatores por trás desse descaso com a região.
O Sr. espera um foco mais forte na América Latina nesse contexto, especialmente por causa da tensa situação geopolítica que enfrentamos atualmente?
Creio que o Parlamento Europeu é a parte das instituições da UE com a mente mais aberta em relação à América Latina. Há uma grande consciência sobre a importância da região
Um perigo é que alguns Estados latino-americanos estão se afastando da União Europeia quando se trata de sua abordagem em relação à Rússia.
Embora os políticos latino-americanos – especialmente os de esquerda – condenem esta guerra vergonhosa, muitos não apoiam as sanções impostas à Rússia. Muitos políticos me confirmaram isso durante minha viagem a São Paulo, Montevidéu e Buenos Aires.
Nesses lugares me disseram: para vocês, europeus ricos, o aumento dos preços da energia e dos alimentos é suportável. Para nós, no entanto, significa fome para alguns setores da população e o colapso da classe média, o que levará a grandes convulsões políticas.
E, no entanto, a UE precisaria da América Latina como um forte parceiro geopolítico neste exato momento?
Claro que sim. Especialmente nesta situação tensa, em que as democracias estão sob ataque, nós certamente precisamos da região como parceira. Em sua maioria, os governos de lá são favoráveis ao multilateralismo e apoiam firmemente as Nações Unidas. São todos governos que querem ver os direitos fundamentais individuais consagrados como princípios – especialmente os novos governos da Colômbia e do Chile. Neste contexto, a UE faria bem em garantir que não percamos estes Estados como parceiros.
O que poderia ser feito agora para fortalecer a cooperação nessas áreas?
Acima de tudo, a UE deve introduzir uma política econômica que permita aos Estados latino-americanos conduzir uma parceria justa em pé de igualdade. Para isto, é necessário apoio financeiro por meio da política comercial. Mas isso também significa que a política comercial da UE não deve se concentrar principalmente na abertura dos mercados.
Isto poderia se materializar, por exemplo, no acordo com o Mercosul. Para que isto funcione, no entanto, os Estados latino-americanos teriam que estar em consonância sobre a estratégia do Mercosul. Isto é muito difícil em um país como o Brasil porque o Brasil tem muita influência econômica e política na região.
Mas a União Europeia deveria enviar a mensagem: nosso mercado está aberto para vocês, e estamos prontos para apoiá-los financeiramente para fechar as brechas sociais que estão sendo exacerbadas pela crise alimentar.
A Comissão Europeia afirma que já está negociando com a América Latina em pé de igualdade.
Naturalmente, os parceiros latino-americanos veem as coisas de forma diferente. Continuam a dizer que as negociações não estão sendo conduzidas no nível dos olhos. São precisamente os interesses particulares de alguns Estados membros que dificultam a concretização do acordo do Mercosul.
Entretanto, como já disse, também é necessário que os latino-americanos finalmente cheguem a um consenso sobre o acordo.
Permita-me voltar às divisões sociais que o Sr. mencionou: como a UE poderia apoiar os países latino-americanos a este respeito?
Em primeiro lugar, financeiramente. Os países latino-americanos precisam de dinheiro. Alguns deles não o têm e, portanto, dependem do Banco Mundial ou do Fundo Monetário Internacional. A Argentina é um bom exemplo: no final de setembro, vence a próxima parcela [da dívida] da Argentina com o Fundo Monetário Internacional (FMI). E isso apesar de a Argentina estar atualmente em uma profunda crise. A Argentina não apenas está lutando com uma inflação crescente, mas também precisa usar seu dinheiro com urgência para estocar suprimentos de alimentos no país para evitar a escassez no outono.
O presidente da República, Alberto Fernández, também aborda o problema com bastante clareza ao dizer que o dinheiro do FMI é necessário para evitar a piora da crise com a situação atual. Enfrentar a crise da dívida que afeta alguns países latino-americanos é uma questão premente. A Europa e os Estados Unidos da América devem estreitar a mão aqui. As empresas europeias também desempenham um papel crucial e podem ajudar a preencher as lacunas de investimento.
Igualmente importante neste contexto é a política de habilidades e educação, tanto em âmbito escolar como universitário. Investir na formação dos jovens é um pré-requisito essencial para os investimentos financeiros. A UE deve se tornar ainda mais ativa nesse campo.
Seu estudo representativo ilustra a opinião da população latino-americana. Em muitas áreas – especialmente no que diz respeito às questões relacionadas a valores – há muita sobreposição. No âmbito da liderança política, contudo, ainda há discrepâncias significativas. Por que isto ocorre?
Se pudéssemos construir nossa parceria apenas com base na vontade da população, atingiríamos nosso objetivo com relativa rapidez. Mas o problema muitas vezes são os governos, por exemplo, no Brasil, onde o presidente democraticamente eleito Jair Bolsonaro tem demonstrado uma postura muito populista. Ele é, por assim dizer, um Trump da Amazônia. Mas isso também se aplica à Venezuela e, em certa medida, aos governos da América Central.
No geral, porém, a UE conta atualmente com uma ampla gama de parceiros de diálogo na América Latina – especialmente desde a guinada à esquerda nas últimas eleições – com os quais tem uma coisa em comum: a percepção de que fortalecer a cooperação multilateral é um pré-requisito para a defesa da democracia.
Por isso, acredito que, nas lideranças políticas da maioria dos países latino-americanos, há uma grande concordância com os resultados de nossa pesquisa. Elas querem cooperar com a Europa porque acham que o caminho europeu para a democracia está certo.
Muitos analistas advertem que uma nova era da política de blocos poderia resultar da guerra na Ucrânia e dos laços cada vez mais estreitos entre a Rússia e a China. Existe o perigo de que a China se estabeleça como um parceiro preferencial na região se a UE não agir agora?
Creio que não seria tão assim na América Latina. A China enfrentará obstáculos maiores nesta região do que na Ásia ou na África. A estratégia chinesa é clara. Para eles [os chineses], a cooperação para o desenvolvimento não se baseia em nenhuma condicionalidade. Eles dizem: “Aqui você tem dinheiro, dê-nos a sua matéria-prima. As outras coisas que você faz não nos interessam.” Claro, isso é particularmente atraente para ditaduras e regimes autoritários. Mais atraente, em todo caso, do que a UE, que impõe requisitos específicos para cooperar – como o Estado de Direito, a transparência e o respeito pelos direitos fundamentais.
É por isso que acredito que temos uma vantagem sobre a China, principalmente na América Latina, pois a população reconhece a UE como um parceiro preferencial. Mas isso também significa que devemos agir agora.
Onde teríamos que tomar medidas concretas?
Acima de tudo, na política financeira e comercial. Esse é o grande problema da UE e, aliás, também o problema das instituições sediadas em Bruxelas. Elas estão tão concentradas nas questões internas da UE que às vezes não têm uma visão geopolítica do papel da UE. O New Green Deal, por exemplo, é muito focado internamente em vez de ser uma oferta para outras regiões do mundo. A UE deve fazer muito melhor nesse campo.
Com a sua iniciativa de infraestrutura – o Global Gateway –, a UE também estabeleceu para si o objetivo de voltar a desempenhar um papel mais importante na cena internacional. O que teria que acontecer aqui?
Seria preciso responder a essa pergunta em detalhe. É também uma pergunta específica de cada país. Quando falamos em implementar estratégias como o Global Gateway, temos que abandonar a ideia de que a América Latina é uma entidade homogênea.
Em países como México, Argentina e Brasil, os maiores países da América Latina, acredito que precisamos focar o apoio europeu no seguinte: quais são os investimentos que ajudam a população local e ao mesmo tempo ajudam o país a cumprir as metas de desenvolvimento sustentável estabelecidas na Agenda 2030, ou seja, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)?
No Brasil, por exemplo, isso assumiria a forma de não investir em nenhuma rodovia se quisermos combater o desmatamento da floresta tropical, mas criar oportunidades econômicas nas regiões onde as pessoas vivem da extração de madeira. Teríamos que investir em projetos concretos que apoiem a criação de empresas ou a capacitação e educação.
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