Brasil Debate, por Paulo Quental - No momento em que o mundo repensa as práticas de política fiscal por causa da pandemia do Covid-19, ganha importância o debate sobre a necessidade de pôr os direitos humanos no centro das decisões fiscais e dar fim à ‘ditadura do mercado’
Embora redistribuição de renda e bem-estar da população sejam objetivos, em tese, de qualquer política fiscal, nos últimos anos a hegemonia do pensamento neoliberal prega que direitos sociais e humanos sejam garantidos a todos apenas – e se – os gastos despendidos forem compatíveis com o “equilíbrio fiscal”. As contas em dia, portanto, se tornaram valor absoluto, acima dos outros. E, sem constrangimento, autoridades assumem o risco de, com essa visão de contas públicas, assistirem a mais fome, desemprego, miséria, mortalidade infantil, crianças fora da escola, déficit habitacional, destruição do meio ambiente, ruína da saúde pública.
Essa visão se mostra ainda mais desastrosa quando o mundo precisa dar respostas rápidas e eficazes à pandemia do Covid-19, que já atinge mais de 100 países, inclusive o Brasil, com cerca de 300 casos confirmados (dados de 18/03). A situação evidencia o quanto o bem-estar população, o atendimento aos direitos humanos, tem ficado em segundo plano.
Se a oposição a essa forma de encarar a política fiscal já vinha crescendo, agora, diante dos últimos acontecimentos, tem tudo para ganhar força. Os contrários à lógica da austeridade permanente consideram que a política fiscal de um país deva primordialmente atender às necessidades de sua população, traduzidas em direitos. Direitos que se encontram em geral descritos nas constituições nacionais e em tratados e acordos internacionais. E que sim, é possível fazer isso sem explodir a dívida pública.
Passando das análises à prática, economistas ligados ao Centro de Estudos de Conjuntura Econômica (Cecon-Unicamp), organizações não-governamentais do Brasil e outros países da América Latina, um comitê de especialistas sob comando do CESR (Center for Economic and Social Rights), a Fundação Friedrich Ebert Stiftung (FES) Brasil e Colômbia, e o Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC) se uniram na iniciativa de elaborar um documento com princípios e diretrizes para orientar Estados (municípios, estados, províncias, países) na elaboração e condução de uma política fiscal que respeite e promova os direitos humanos.
A discussão desse documento começa pela proposta de um diálogo interdisciplinar, aberto, iniciado em um seminário em 6 de março último, no Instituto de Economia da Unicamp, em Campinas (SP). Um esboço do documento, intitulado “Principios y Directrices de Derechos Humanos en la Politica Fiscal”, foi posto em discussão com diversos grupos da sociedade civil organizada, e publicado em um site criado especialmente (www.derechosypoliticafiscal.org). Nele é possível postar contribuições para a redação do texto.
A pesquisadora do Cesit (Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho) e desembargadora aposentada Magda Barros Biavaschi, uma das coordenadoras do evento, explicou que o desafio é unir pessoas das áreas jurídica e econômica, de forma a criar um documento que facilite a responsabilização pelo descumprimento de direitos. Os obstáculos são inúmeros, já que há quase um consenso de se condicionar os direitos sociais fundamentais ao chamado “equilíbrio fiscal”.
“Vivemos tempos de ditadura do mercado”, afirmou. “As elites apostam e ganham no retrocesso, e isso em nível nacional e internacional. Estamos presenciando a derrocada das instituições públicas e dos direitos sociais duramente conquistados, o momento é grave”.
Sergio Chaparro, do CESR, chamou a atenção para a importância estratégica da disputa de recursos para garantir os direitos humanos, e que o documento pode ser um instrumento nessa direção. “Sem recursos não é possível garantir direitos; há que saber que reformas precisam ser feitas sobre a política fiscal para garantir direitos”.
Também do Cecon-Unicamp, Grazielle David explicou a estrutura do texto, formado por princípios e diretrizes. Os primeiros “falam mais com os juristas”, são normativos, descrevem as obrigações dos Estados em relação às políticas fiscais e ao cumprimento dos direitos humanos. É um princípio geral, por exemplo, que a política fiscal deve ter como objetivo fundamental a realização de direitos e uma obrigação transversal que os Estados devem garantir que a política fiscal seja socialmente justa e ambientalmente sustentável, por exemplo.
Já as diretrizes “falam mais com os economistas”, são orientações políticas específicas e mandatos de ação sobre como os governos podem implementar os princípios. É uma diretriz, por exemplo, aprofundar a democracia fiscal, garantir que os processos de tomada de decisão fiscal sejam baseados no mais amplo diálogo nacional possível, com participação significativa da sociedade civil, com escrutínio da população durante as etapas de projeto, implementação e avaliação da política fiscal.
“Não são os direitos que devem se adaptar ao orçamento previsto, temos que mudar essa lógica; a ideia é fortalecer a normativa dos direitos humanos na formulação, implementação e monitoramento da política fiscal”, afirmou Grazielle.
À tarde, no mesmo dia, realizou-se o “Seminário Internacional: Diálogos sobre direitos humanos e política fiscal”, com mesas formadas, entre outros, pelos economistas Pedro Rossi (Cecon-Unicamp), Esther Dweck (UFRJ) e Laura Carvalho (USP), a especialista em direitos humanos Gisele Ricobom (UNILa), o ex-ministro do TST Augusto Cesar Leite de Carvalho, o professor da Universidade de Columbia e ex-ministro colombiano José Antonio Ocampo, o argentino Juan Pablo Gimenez (CEPAL – Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) e a ex-ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres Eleonora Menicucci, professora da Unifesp.
Esther Dweck, especialista em orçamento público, afirmou que a aprovação da emenda do teto de gastos (EC 95) se soma às regras fiscais defendidas por Paulo Guedes, como a PEC emergencial, e as já existentes antes de 2016, como a Regra de Ouro e a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) para fazer do Brasil um país de “ajuste fiscal permanente, estruturante, e com consequências gravíssimas sobre a população”.
Entre essas consequências, ela elenca a volta à extrema pobreza de 4,5 milhões de pessoas, o fato de mais da metade dos Estados terem mais trabalhadores informais que formais, o aumento de desigualdade de renda (de 2016 para cá a renda dos 10% mais ricos cresceu sobre a dos 40% mais pobres). “O que assistimos é a uma agenda de desmonte sequencial. Achávamos que as conquistas eram caminho sem volta, erramos”.
Pedro Rossi enfatizou a diferença abismal que existe entre o ponto de vista de quem defende os direitos humanos e o dos economistas do mainstream. No caso do primeiro, o bem-estar social é garantia plena de direitos, no caso do segundo “é resultado de um sistema eficiente, da organização de mercados eficientes, não de um objetivo construído politicamente. A economia antecede ao social, que é subproduto”.
Ele alertou para o fato de que reduzir a desigualdade – pauta defendida até por neoliberais – não necessariamente significa fazer valer os direitos humanos para todos: “Os princípios de direitos humanos devem orientar e estar conectados com as políticas de redução de desigualdade”.
Ocampo e Gimenez trouxeram a discussão para o âmbito da América Latina, tentando encontrar as razões para esta ser a região mais desigual do mundo. Para Ocampo, há um traço comum entre os países, como a aplicação de políticas distributivas mais pela via do gasto do orçamento e menos pela tributação. Gimenez aprofundou a discussão tributária, e apontou o desequilíbrio entre os impostos sobre pessoas físicas e jurídicas. Ambos salientaram que no período de 2002 a 2016, em geral, os países latino-americanos passaram por uma notável redistribuição de renda.
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