Esta crise é um golpe violento no paradigma neoliberal e mostra que se o Estado pode, por meio de solidariedade social e esforço coletivo, mobilizar recursos para vencer o vírus, pode também vencer mazelas sociais como a miséria, a falta de moradia, o desemprego, os desafios ambientais, etc.
A primeira ministra alemã, Angela Merkel, qualificou o enfrentamento ao coronavírus como o maior desafio desde a Segunda Guerra Mundial. Nenhum outro desafio, disse ela, dependeu tanto do empenho e da solidariedade comum.
Assim como aquela guerra resultou em uma profunda transformação no modo de organização capitalista, a crise do coronavírus pode marcar uma inflexão, daquelas que move paradigmas e estabelece novos padrões de relação entre Estado, mercado e sociedade. Trata-se de um momento histórico específico, único e raro, que mobiliza a sociedade em torno de um propósito comum e testa a capacidade das instituições estabelecidas.
Este breve artigo resgata a experiência histórica do pós-guerra e diferencia a organização social e o papel do Estado em uma guerra convencional e na atual guerra sanitária. A partir dessa análise avaliam-se os possíveis aprendizados com a crise atual.
Uma economia de guerra é um desafio e tanto. Assim como na guerra sanitária, a guerra convencional mobiliza mentes e corações, subordina o indivíduo e as individualidades ao objetivo comum e atribui ao Estado o papel de organizar a sociedade para tal objetivo.
Na Segunda Guerra Mundial, os governos europeus promoveram o direcionamento quase total dos recursos da sociedade, com controles diretos sobre a atividade econômica, direcionamento do esforço produtivo e restrições ao consumo da população. Importação, produção, distribuição e os preços dos bens e serviços eram extensivamente controlados pelos governos.
O desemprego era praticamente inexistente, pois o esforço de guerra precisava da ajuda de todos e o financiamento desse empreendimento gigantesco se dava com endividamento dos governos e aumento de tributos, os limites para o gasto público eram os limites de recursos que a sociedade era capaz de produzir.
Se hoje o termo “austeridade” é usado para indicar o corte de gastos públicos, na Segunda Guerra o apelo por austeridade dizia respeito às famílias. As políticas de restrição ao consumo eram severas, e a parcimônia das famílias era necessária para fazer funcionar a máquina de guerra.
O racionamento de bens de consumo e serviços, a restrição de acesso a matérias primas, a priorização de setores produtivos e a estatização de setores estratégicos foram observados em quase todos os países que participaram da Segunda Guerra Mundial.
Desnecessário lembrar os detalhes do que foi a experiência mais terrível que a humanidade viveu, mas vale recordar que o fim da guerra marca o fim de uma civilização ocidental e um recomeço, uma oportunidade de lutar por algo melhor.
As lições da Segunda Guerra ultrapassam o período de conflito e se estendem às origens do problema: os ajustes recessivos do entreguerras, a desregulação dos mercados associada à crise financeira de 1929, o desemprego e o descaso com os mais pobres. Naquele contexto, os Estados liberais passaram a ser vistos como um terreno fértil para os projetos autoritários que resultaram na guerra.
O espírito de 1945, que dá título ao filme de Ken Loach, ilustra um sentimento compartilhado na Inglaterra no imediato pós-guerra. De um lado, uma rejeição à violência da guerra e aos erros do passado que nunca mais devem ser repetidos. A miséria, o desemprego e o descaso do entreguerras não deveriam voltar nunca mais.
De outro lado, uma onda de esperança e empoderamento da sociedade, que vence um inimigo comum a partir de um esforço coletivo. Afinal, se é possível organizar a sociedade e mobilizar recursos para vencer a guerra, também era possível vencer desafios sociais em tempos de paz, mobilizando recursos para garantir o bem-estar social.
E a vitória arrasadora do trabalhista Clement Attlee sobre o herói de guerra Winston Churchill expressa esse espírito. Socialista declarado, Attlee mantém muitos dos controles que o Estado usava durante a guerra, promove uma nacionalização em larga escala de setores estratégicos, um plano de habitação social gigantesco e constrói o sistema nacional de saúde inglês.
Muitos economistas de hoje diriam que seria impossível fazer isso, pois o Reino Unido saiu extremamente endividado da guerra e que não haveria dinheiro. Mas a lição da guerra foi justamente que a sociedade, por meio do Estado, poderia mobilizar recursos para vencer os desafios a que se propõe. No caso inglês, esses desafios estavam descritos no Beveridge Report, o plano do Partido Trabalhista, elaborado durante a guerra, que se tornou a referência dos Estados de bem-estar sociais do pós-guerra.
Outros países seguiram nessa linha e a garantia do emprego e dos direitos humanos se tornaram prioridades das agendas políticas dos países centrais nas décadas seguintes, a despeito da alternância de poder entre partidos mais conservadores e progressistas. Um capitalismo domesticado que, ainda que conservasse suas contradições, promoveu bem-estar social e redução de desigualdades nos países centrais durante algum tempo.
Uma guerra sanitária como esta que vivemos está longe de ser uma guerra convencional. Enquanto a guerra convencional pressupõe a utilização intensiva dos recursos da sociedade, a guerra sanitária desmobiliza uma parte importante dos recursos para proteger as pessoas. É um resfriamento controlado da economia para permitir o isolamento social do maior número de pessoas possível.
Ao mesmo tempo em que a maior parte das atividades econômicas paralisam e as pessoas ficam em casa, outras atividades precisam ser reforçadas, em especial as atividades relacionadas ao combate à epidemia, mas também serviços de segurança, administração pública, comércio de alimentos e medicamentos, além de toda cadeia produtiva ligada à saúde e à alimentação.
Esse processo envolve um tipo de organização social sem precedentes e, assim como em uma guerra convencional, é necessária a transformação de economias de livre mercado em economias planejadas, com controle centralizado.
Em muitos países, as décadas de reformas neoliberais reduziram a capacidade de enfrentamento da epidemia: o desfinanciamento dos sistemas de saúde pública reduz a capacidade de atendimento de infectados; os mercados de trabalho flexíveis favorecem demissões em massa; a desconstrução de redes de proteção social dificultam o envio de recursos para a população desempregada e desamparada; a ausência de instrumentos de políticas industriais e tecnológicas desfavorece o fornecimento de equipamentos e insumos para o combate à doença; o desmonte dos bancos públicos dificulta o direcionamento de crédito para empresas e famílias; a desregulamentação financeira alimenta processos de fuga de capitais e a ameaça de amplificar a crise econômica; e a rigidez das regras fiscais atrasam a resposta da política econômica e provocam incertezas jurídicas sobre as possibilidades de atuação do Estado. Além disso, a distribuição desigual da riqueza torna dramática a situação dos mais pobres.
A DEFESA DO NEOLIBERALISMO COMO UMA RACIONALIDADE FUNDADA NA CONCORRÊNCIA, NA LUTA ECONÔMICA DE UNS CONTRA OS OUTROS, É CONTRADITÓRIA COM O MOMENTO ATUAL E PERDE CADA VEZ MAIS SENTIDO HISTÓRICO.
Apesar dessa fragilidade, governos em todo o mundo mobilizam instrumentos para garantir salário e emprego para os trabalhadores formais, renda para trabalhadores informais e desempregados, recursos para as empresas, estabilidade para o sistema financeiro e um amplo conjunto de medidas voltadas para o combate da doença que vão desde a estatização de hospitais privados até o controle de preços e do comércio internacional de bens estratégicos.
Os governos também redescobriram o seu papel como indutor da produção e da distribuição de recursos, forçando a mudança produtiva de setores industriais: indústrias de tecido passam a produzir máscaras e outras vestimentas médicas, a indústria automobilística se dedica à produção de peças e equipamentos para o respirador mecânico, a indústria de bebidas se volta para a produção de álcool em gel, além de outros exemplos.
A política fiscal deixou de seguir o receituário ortodoxo e os limites para o financiamento do gasto público deixaram de existir. Economistas que diziam que o dinheiro do governo tinha acabado abandonaram seus dogmas ou viraram caricaturas. O FMI (Fundo Monetário Internacional) recomenda aumentar o deficit fiscal sem preocupações com a dívida pública. Parece que o mundo virou do avesso.
Esse processo se soma a uma decadência já existente do paradigma neoliberal que vem desde a crise de 2008 quando o mundo assistiu outro conjunto atípico de políticas econômicas. Desde então, abriu-se um amplo debate sobre o papel dos Estados. A crise ensinou, por exemplo, que as medidas de austeridade fiscal não contribuem para a recuperação econômica e ainda aumentam as desigualdades. Os controles sobre os fluxos de capitais, o protecionismo comercial e as políticas industriais, que eram tabus antes da crise, voltaram à ordem do dia.
Também já ganha impulso desde 2008 uma ampla discussão sobre a renda básica universal em um cenário de desemprego, subemprego e de transformações tecnológicas. O questionamento das desigualdades sociais passa a ter relevância no debate público e a questão ambiental também é uma pauta de importância crescente.
Nesse contexto, a guerra sanitária deve acelerar a derrocada do paradigma neoliberal. A defesa do neoliberalismo como uma racionalidade fundada na concorrência, na luta econômica de uns contra os outros, é contraditória com o momento atual e perde cada vez mais sentido histórico.
É evidente que a sociedade do futuro está em aberto e ninguém espera que o mundo se transforme apenas a partir de aprendizados coletivos, independentemente das estruturas de classe e dos interesses constituídos. Da derrocada do neoliberalismo, podem ganhar impulso tanto tendências autoritárias e nacionalistas quanto novas forças transformadoras e democráticas.
Mas, de toda forma, sairemos desta crise com pelo menos três lições específicas e um aprendizado geral. Primeiro, os Estados nacionais devem investir maciçamente em saúde pública para se preparar para outros eventos desta proporção. Segundo, as estruturas produtivas e tecnológicas nacionais devem ter apoio público para o desenvolvimento de setores estratégicos, uma vez que o livre comércio internacional não garante o abastecimento de produtos estratégicos para situações como a atual. E, terceiro, é necessário aprimorar os mecanismos de assistência social e, para isso, a renda básica universal temporária pode ganhar status de permanente em muitos países.
Por fim, a lição geral é que se o Estado pode, por meio de solidariedade social e esforço coletivo, mobilizar recursos para vencer o vírus, pode também garantir plenamente os direitos humanos, vencer mazelas sociais como a miséria, a falta de moradia, o desemprego, desafios ambientais, etc.
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