A pandemia atual do coronavírus revela de modo dramático que as dimensões econômicas e sociais do desenvolvimento são inexoravelmente vinculadas, sendo, ao mesmo tempo, um erro e uma falta de visão a oposição nefasta e perversa entre a economia e a saúde
O conceito do Ceis (Complexo Econômico-Industrial da Saúde) foi desenvolvido no início dos anos 2000 para captar a relação indissociável entre saúde e desenvolvimento, segundo uma perspectiva endógena que considera a saúde e o sistema de produção e de inovação relacionado como parte indissociável de um padrão de desenvolvimento e não apenas como um fator acessório, funcional e exógeno, delimitado estritamente ao campo das políticas sociais e mesmo compensatórias frente à dinâmica do capital.
A visão restrita da relação saúde-desenvolvimento aparece na concepção adotada pela OMS (Organização Mundial de Saúde) há cerca de duas décadas, em forte interação com o Banco Mundial e o FMI (Fundo Monetário Internacional). Essa visão foi consolidada e intensamente difundida no relatório clássico de 2001 sobre a relação entre economia e saúde (“Macroeconomics and health: investing in health for economic development”). A despeito de, acertadamente, considerar a saúde como um direito humano essencial, acaba, do ponto de vista econômico, reduzindo essa relação ao fornecimento de capital humano, como implicitamente aparece na “ajuda” que os países desenvolvidos deveriam fornecer aos países pobres (com grande destaque para a África) para que o enfrentamento e a redução da incidência de doenças como Aids, malária e tuberculose (entre muitas outras doenças transmissíveis) permitissem elevar a produtividade do trabalho e o investimento privado, limitados por uma “infestação” sanitária nos países e regiões pobres.
Também importante destacar outra vertente tradicional do estabelecimento do elo entre saúde e desenvolvimento nos trabalhos liderados por importantes pensadores liberais, com destaque para Amartya Sen, que tratam a saúde como fator essencial da liberdade de escolha, seguindo o individualismo metodológico que associa o desenvolvimento à liberdade dos indivíduos em sua singularidade. A saúde aparece, mais uma vez, como fator exógeno que contribui ou não para o exercício da liberdade individual. Pessoas saudáveis são mais livres para escolher.
São platitudes e reducionismos que não colocam o dedo na ferida, nas mazelas sociais e econômicas que estão por trás da geração estrutural de desigualdade em todos os seus níveis!
Em todas essas visões, fica subsumida a reprodução endógena e dialética da dinâmica capitalista no interior da saúde, envolvendo tanto o desenvolvimento das forças produtivas, do investimento, do emprego e da inovação, quanto a tendência, inerente ao nosso sistema econômico, de geração de assimetrias e desigualdades nos níveis sociais, territoriais e nacionais, em um processo de clara globalização movida pela inovação em todas suas dimensões (inclusive a financeira) e pela, simultânea, exclusão.
Com o esforço de desenvolver um programa de pesquisa que possui, desde sua origem, um claro compromisso com novas concepções de políticas públicas — refutando qualquer visão positivista de neutralidade científica —, foi proposta uma mudança de paradigma da relação entre as dimensões econômica e social do desenvolvimento (podendo também incluir a dimensão ambiental como uma decorrência natural dessa visão), que não deveriam ser trabalhadas de modo estanque como campos analíticos e normativos separados.
A realidade concreta da saúde e das necessidades sociais, como revelado de modo devastador na pandemia do coronavírus, impõe a necessidade de uma visão integrada. As dificuldades de importar produtos essenciais para o tratamento como ventiladores, materiais médicos, insumos dos testes para diagnóstico e, no futuro, medicamentos e vacinas que sejam efetivos, são, simultaneamente questões econômicas e sociais. A separação dessas dimensões é fruto de um olhar analítico fragmentado e reducionista, enraizado na economia, mas também em outras ciências sociais e nas políticas públicas, afastando-se dos contextos históricos e temporais específicos nos quais essas dimensões são articuladas sistemicamente.
TEMOS QUE APRENDER UM NOVO PADRÃO DE POLÍTICA PÚBLICA QUE, AO MESMO TEMPO, SEJA SISTÊMICO E COMPROMETIDO COM AS DEMANDAS DE NOSSA SOCIEDADE PARA GARANTIR O BEM-ESTAR
Como desdobramento, e incorporando uma visão de economia política, a perspectiva do Ceis aponta para a necessidade de consideração dos espaços de formulação e implementação de políticas públicas pelos Estados Nacionais — daí o diálogo analítico e político dessa concepção com as linhas de pesquisa e de políticas públicas que abordam os Sistemas Nacionais de Inovação e os Sistemas Nacionais de Saúde e de Bem-Estar —, envolvendo, inexoravelmente, sua interação com as trajetórias nacionais de desenvolvimento que podem ou não gerar projetos nacionais.
Assim sendo, a abordagem do Ceis procura olhar a saúde como componente essencial da dinâmica econômica que se reproduz em um espaço específico e de alta importância estratégica. Se a dinâmica global atual gera novas frentes de expansão e de inovação, essas se expressam também no campo da saúde como um dos mais dinâmicos no contexto da quarta revolução tecnológica. Se, ao mesmo tempo, gera assimetrias e exclusão, essas também se reproduzem no campo da saúde.
O Brasil perdeu dinamismo econômico, produtivo e industrial, havendo uma clara regressão em sua estrutura econômica, e não conseguiu alterar substantivamente a desigualdade pessoal, regional e territorial. Essa perda de dinamismo, regressão na estrutura produtiva, e desigualdade se revelaram de modo arrebatador na pandemia atual.
Os dados e as informações do Ceis neste período de crise são tristemente arrebatadores e revelam essa dinâmica perversa do capitalismo contemporâneo que fragiliza, a um só tempo, os sistemas produtivos nacionais da periferia — a concepção cepalina centro-periferia continua mostrando grande pertinência e validade —, o SUS e os sistemas de bem-estar em geral.
Todavia, do ponto de vista econômico do Ceis, estamos vulneráveis para enfrentar o coronavírus, como pedintes em um mercado internacional permeado por interesses e, forçoso dizer, pela ganância e pela economia política que articula poder econômico, tecnológico e político. No presente, mais de 70 países já adotam práticas protecionistas de impor barreiras e mesmo impedimentos ao acesso aos seus produtos, o que é ainda mais grave no âmbito dos países menos desenvolvidos. Nossas importações chegam a quase um orçamento do Ministério da Saúde (podemos estimar em US$ 20 bilhões se contabilizarmos, além das importações em produtos captadas nas estatísticas de comércio exterior, as advindas de bens intermediários e dos pagamentos por tecnologias, reconhecidamente significativos na área de saúde). Apenas em ventiladores pulmonares a dependência do Brasil quintuplicou em termos reais nos últimos 20 anos, segundo metodologia utilizada há duas décadas por nosso grupo de pesquisa, atingindo US$ 50 milhões.
O SUS, como maior sistema universal do mundo, está assentado em “pés de barro” para enfrentar a crise atual, pela fragilidade da capacidade produtiva e tecnológica local tanto para ofertar produtos essenciais no país quanto para se articular de modo soberano com empresas e países mais desenvolvidos, envolvendo acordos de transferência de tecnologia e também relações comerciais virtuosas e complementares para atender às necessidades sociais.
No presente, estamos reféns de uma competição monopólica desleal com práticas que afastam o mundo dos objetivos meritórios de um desenvolvimento global sustentável. A situação econômica e social é dramática e completamente indissociável. Observamos sequestro de produtos médicos; cancelamento de contratos de ventiladores pulmonares pela existência de “propostas” melhores de países desenvolvidos; falta de acesso a insumos para testes de diagnóstico; extrema fragilidade dos programas de atenção primária em saúde, que foram atingidos por políticas econômicas e sociais desastrosas do poder público (seguindo, muitas vezes, a concepção de economistas defensores do “austericídio” que perderam totalmente a visão moral que marcou a economia política em seu nascimento); UTIs públicas acima do limite de sua capacidade de atendimento, sem garantia de acesso aos excluídos; e diferenças e desigualdades entre pessoas e territórios dentro de nosso país, que geram taxas de letalidade por infecção de coronavírus de mais de dez vezes de diferença entre pessoas que deveriam ter os mesmos direitos (como o observado entre as populações que vivem na Maré e na Zona Sul no Rio de Janeiro).
A pandemia atual do coronavírus revela de modo dramático e confirma a hipótese analítica e metodológica do Ceis de que as dimensões econômicas e sociais do desenvolvimento são inexoravelmente vinculadas, sendo, ao mesmo tempo, um erro e uma falta de visão a oposição nefasta e perversa entre a economia e a saúde.
Para avançar na agenda temos que apontar caminhos para o futuro, pois a realidade natural será dramática não apenas para essa pandemia, mas também para as futuras epidemias e pandemias e para os problemas de saúde que afetam o Brasil, desde o campo das doenças transmissíveis da pobreza, até o das doenças crônicas como câncer e doenças do sistema circulatório. A crise e a vulnerabilidade estão na nossa porta aguardando para “dar o próximo bote” se não pensarmos e agirmos diferentemente.
Ao contrário das políticas industriais e de desenvolvimento produtivo tradicionais, com a marca setorial e muitas vezes capturadas por interesses particulares, temos que aprender um novo padrão de política pública que, ao mesmo tempo, seja sistêmico e comprometido com as demandas de nossa sociedade para garantir o bem-estar. Sistêmico, uma vez que o foco nas necessidades, como na saúde, envolve, a articulação entre diferentes indústrias (farmacêutica e biotecnológica, de equipamentos e materiais médicos) e dessas com os serviços de saúde (o elo final do sistema produtivo da saúde onde todos os produtos industriais são utilizados, a exemplo do uso dos ventiladores nas UTIs). Comprometidos com as demandas da sociedade porque, contrariamente a um desenvolvimentismo vulgar, não cabe apenas apoiar setores produtivos se esses não estiverem vinculados às necessidades sociais. Não apenas as políticas setoriais, mas também as ditas como orientadas por missões precisam se inserir em realidades histórico-concretas das necessidades das pessoas que, afinal financiam o Estado, o fomento e o poder de compra público.
É para a sociedade real brasileira que as políticas de desenvolvimento produtivo e de inovação devem estar voltadas. A perspectiva do Ceis propõe uma abordagem passível de ser generalizada para viabilizar um padrão de desenvolvimento norteado pela equidade, pelo dinamismo econômico e tecnológico de um dos sistemas produtivos mais importantes e estratégicos do mundo — que, no Brasil, responde por 9% do PIB, por pelo menos 15 milhões de empregos diretos e indiretos e por 30% da pesquisa brasileira – e pela soberania para implementar políticas sociais para que possamos atender às necessidades de nossa sociedade e não deixar as pessoas vulneráveis pela irracionalidade de uma visão de desenvolvimento míope que opõe os direitos sociais à economia. Os direitos sociais e o direito à vida não apenas cabem no PIB, mas são parte essencial da solução, constituindo uma alavanca para a superação estrutural da crise.
Carlos Grabois Gadelha é coordenador das Ações de Prospecção da Presidência e Líder do Grupo de Pesquisa “Desenvolvimento, Inovação e Complexo Econômico-Industrial da Saúde” da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz).
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