A austeridade é seletiva e o projeto de Estado mínimo é apenas mínimo no que diz respeito aos direitos sociais. Fica evidente que não faltam recursos, mas sim vontade política de canalizá-los para as demandas concretas da sociedade
A humanidade vive hoje um dos maiores desafios de sua história recente. Após 40 anos do início do desmonte do pacto social do pós-guerra, o vírus revelou a fragilidade do contrato social atual, como destacado em editorial do Financial Times. Com sua desigualdade brutal, o risco de morrer por covid-19 é dez vezes maior em bairros com piores condições sociais no Brasil. Enquanto o editorial afirma que são necessárias reformas radicais para forjar uma sociedade que funcione para todos, por aqui, governo e imprensa discutem a necessidade de retomar a agenda de reformas neoliberais tão logo tenha passado a fase aguda da crise, aprofundando as medidas de austeridade e de desmonte da Constituição de 1988.
Para enfrentar a pandemia de covid-19 e evitar o colapso dos sistemas de saúde, a expressiva maioria dos países adotou medidas de isolamento social. Essa medida, até o momento considerada a mais eficaz para conter o rápido contágio do novo coronavírus, impõe uma contração da atividade econômica por paralisar, total ou parcialmente, a produção em diversas áreas e por restringir grande parte da demanda privada.
No Brasil, a incerteza quanto à duração do período de contração da atividade econômica soma-se à incerteza quanto à efetividade da atuação do governo durante e após a pandemia. Tal indeterminação não decorre apenas da instabilidade política gerada por ações desastrosas, como a mudança no comando do Ministério da Saúde em meio à pandemia, mas, principalmente, da estabilidade política de personagens anacrônicos da equipe econômica, com suas políticas econômicas obsoletas. Anteriormente à pandemia, a política neoliberal do ministro Paulo Guedes fragilizou as instituições e os instrumentos de política econômica agora imprescindíveis no combate à crise econômica e sanitária, conforme discutido em "Austeridade é a maior aliada do coronavírus no Brasil".
Em meio ao que pode vir a ser a maior crise econômica já experimentada pela sociedade brasileira, o governo federal decidiu afastar temporariamente as amarras fiscais que, artificialmente, o impedem de atuar de forma mais contundente para estimular a atividade econômica e distribuir renda. No entanto, a morosidade para utilizar as cláusulas de escape da Emenda Constitucional 95/2016 (o “teto de gastos”) e da Lei de Responsabilidade Fiscal (a LRF) levou a uma resposta tardia e insuficiente para o enfrentamento da crise. Além disso, a todo momento, a equipe econômica procura enfatizar que essa maior flexibilidade da política fiscal terá curta duração e será de curto alcance.
No dia 15 de abril, o governo federal enviou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2021 , com a mensagem principal de "manter austeridade fiscal para 2021-2023". As declarações recentes da equipe econômica sinalizam que a situação atual seria um mero acidente de percurso na trajetória “tão bem” traçada pelo governo federal. Após um breve ensaio por parte da ala militar do governo com a proposta de um plano de investimentos públicos para o pós-pandemia, vimos a retratação pública do ministro da Casa Civil, Braga Netto, e o apoio direto do presidente Bolsonaro às políticas de Paulo Guedes. A equipe econômica chegou a apresentar um estudo, no mínimo duvidoso, que afirma que o país cresceria menos, caso adotasse um programa de obras públicas.
As reformas estruturais que estavam em curso fragilizam a economia brasileira, mantêm o cenário de estagnação e pioram a distribuição de renda.
O ministro Paulo Guedes não mudou o seu discurso neoliberal, mesmo com todos os alertas nacionais e internacionais advindos da crise atual. Nas diversas lives promovidas por instituições financeiras, o ministro reforça a mensagem que a agenda de reformas estruturais não foi deixada para trás. Na live do BTG Pactual, de 20 de abril, por exemplo, Guedes afirmou que “a velocidade de escape do buraco negro vai depender do prosseguimento das reformas estruturais".
A agenda de reformas apresentadas por Paulo Guedes é uma continuação do desmonte institucional em curso desde o mandato de Michel Temer e sua “ponte para o futuro”. Tendo início no governo Temer, mesmo sem apoio popular, as reformas contavam com o apoio de segmentos da elite econômica e vimos então a aprovação de duas medidas centrais ao projeto de desmonte dos instrumentos de desenvolvimento inclusivo e soberano. Primeiro, a Emenda Constitucional do “teto dos gastos” aprovada em dezembro de 2016, a EC 95/2016, que subverte a lógica da Constituição Cidadã e ameaça a garantia de direitos com cortes sucessivos nos gastos sociais. Segundo, a reforma trabalhista que, por sua vez, intercede no conflito distributivo em prejuízo dos trabalhadores ao reduzir as suas garantias e fragilizar suas instituições de representação.
A LENTIDÃO E A FALTA DE PRIORIDADE DAS MEDIDAS DE ENFRENTAMENTO À CRISE ECONÔMICA IMPEDEM A PARALISAÇÃO PLANEJADA DA ECONOMIA E ACABARÃO POR MINAR A RECUPERAÇÃO NO PÓS-PANDEMIA
O governo Bolsonaro não apenas deu continuidade ao projeto de desmonte institucional como o ampliou. Com a aprovação da Reforma da Previdência, haverá a redução das transferências de renda à população nos próximos anos. O acordo de livre comércio entre Mercosul-União Europeia, por sua vez, ameaça diversos setores da indústria brasileira, em especial o complexo industrial da saúde. Ademais, ocorreu a redução da atuação dos bancos públicos federais, com o pagamento antecipado dos empréstimos à União e mudanças nas diretrizes dos bancos, favorecendo os bancos privados. E foi aprovada a Medida Provisória da liberdade econômica, que acentua regras de flexibilidade do mercado de trabalho.
Na esteira do desmonte do Estado brasileiro, o governo federal já havia anunciado outras medidas previamente à pandemia. A agenda vai além do ajuste fiscal permanente imposto pela EC 95/2016, incluindo as três propostas de emendas constitucionais enviadas ao Congresso em novembro de 2019 com o objetivo de acabar com todos os fundos setoriais, criar um plano emergencial para aprofundar os impactos da EC 95/2016 e impor o chamado “DDD” (Desobrigar, Desindexar e Desvincular). Na prática, trata-se de um novo pacto federativo brasileiro, o que significa acabar com a federação e sua solidariedade fiscal. Além disso, o governo propõe uma abertura comercial unilateral em um mundo cada vez mais protecionista, uma Reforma Administrativa baseada em mitos sobre o funcionalismo público e que sucateia a prestação de serviços públicos no Brasil, e a reestruturação financeira dos estados, com a imposição de medidas de austeridade e privatização das empresas estatais estaduais.
A lentidão e a falta de prioridade das medidas de enfrentamento à crise econômica impedem a paralisação planejada da economia e acabarão por minar a recuperação no pós-pandemia.
Por definição, a paralisação da produção provocada pelas medidas de isolamento é representada por uma contração de um dos principais indicadores econômicos, o Produto Interno Bruto). As estimativas para a economia brasileira apontam para uma queda entre 2,0% a 11% do PIB em 2020. Mas a contração do PIB não necessariamente se desdobraria em alto desemprego, empobrecimento da população ou na falência sequencial de diversas empresas, se a paralisação estivesse sendo feita de forma planejada. Falta ao Brasil um planejamento estratégico para que a condução das políticas econômicas seja coerente com o objetivo de atenuar os impactos econômicos da crise.
Diante da necessidade de enfrentar os efeitos imediatos da pandemia, a agenda de reformas foi parcialmente interrompida. Em um raro momento de convergência, economistas de diversas correntes teóricas aderiram à proposta do G7 de "do whatever it takes" (“faça o que for necessário”) para manter a atividade econômica e salvaguardar a população dos riscos iminentes. Entretanto, o governo federal não parece endossar essa proposta por completo e utiliza a situação para barganha política, insistindo na tese equivocada de um contraponto entre economia e medidas sanitárias.
Até o momento, o governo federal atuou com injustificada lentidão para garantir os fluxos de renda à população de forma a assegurar a permanência efetiva em seus domicílios. O auxílio emergencial aos trabalhadores informais e autônomos e beneficiários do Bolsa Família demorou a ser definido e o efetivo pagamento tem sido ainda mais lento. Já a proposta de auxílio aos trabalhadores formais, apresentada nas MPs 927 e 936, não só reduz consideravelmente a renda da grande maioria dos trabalhadores, como destacou a nota do Cecon/Unicamp, como não tem qualquer garantia de não demissão dos trabalhadores.
Para agravar o quadro, a tímida proposta de auxílio às empresas não evita as demissões em massa, pois não garante alívio financeiro às empresas de áreas não essenciais, diante da interrupção de seus fluxos de caixa. Cabe aqui ressaltar a ausência de medidas mais efetivas por parte dos bancos públicos que, em uma crise de proporção menor, como a de 2008, assumiram a responsabilidade de garantir crédito com custo baixo às empresas.
Também é muito lenta e de forma desorganizada a ampliação de recursos para áreas prioritárias, em especial, à saúde e à ciência e tecnologia, de forma a garantir a expansão de leitos da atenção básica às UTIs, a aquisição de equipamentos de proteção individual, a produção de testes e a busca por medicamentos e vacinas. Além da discussão federativa sobre a forma de repasse desses recursos, não há preocupação efetiva com a garantia de abastecimento e reconversão produtiva, direta ou indiretamente, para atender às demandas emergenciais. Os episódios recentes de “roubo” de carga na remessa de máscaras e equipamentos demonstram o risco da dependência extrema de importação em uma área central à vida.
A contração econômica gera uma redução das receitas tributárias o que pode ter como consequência o aprofundamento de cortes de gastos dos entes subnacionais que, por sua vez, não possuem os instrumentos disponíveis à União. O urgente auxílio aos entes federados tornou-se alvo de barganha política e a proposta aprovada na Câmara não conta com o apoio do governo federal, que parece mais comprometido com a imposição de medidas de austeridade a estados e municípios do que com fazer frente à queda inevitável de arrecadação e a necessidade de manutenção dos serviços públicos.
Em contraposição, o Banco Central tem adotado medidas céleres e volumosas para garantir salvaguardas ao sistema financeiro, tanto ao setor bancário quanto às demais instituições financeiras. Ainda que muitas dessas medidas sejam meritórias, o que cabe ser ressaltado é a diferença no ritmo e nos montantes destinados ao sistema financeiro quando comparado às demais medidas de apoio direto às famílias e empresas. Todas as medidas exigem agilidade na sua formulação e recursos adequados para que sua efetividade seja garantida.
O retorno às políticas de austeridade e às reformas neoliberais no pós-pandemia acabará por desmantelar o pacto social brasileiro e inviabilizar um modelo de desenvolvimento inclusivo e sustentável.
O PROJETO DE RETOMADA DA POLÍTICA DE AUSTERIDADE NÃO É APENAS UMA ESCOLHA DE POLÍTICA ECONÔMICA, MAS ESPECIALMENTE DE ECONOMIA POLÍTICA
Não é difícil perceber que todas as medidas adotadas durante a crise do coronavírus dependem de instituições e instrumentos ameaçados pelas reformas estruturais em curso. Mas, em vez de fortalecê-los, o governo federal mostra que pretende aprofundar sua destruição. Como seria possível enfrentar uma nova pandemia sem o SUS? Como seria enfrentar uma crise econômica sem, por exemplo, o BNDES, a Caixa Econômica Federal, o Cadastro Único ou a rede do Sistema Único de Assistência Social?
No Brasil, o frágil consenso quanto à flexibilização das regras fiscais — a Regra de Ouro, dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal e o teto de gastos — não se manterá no pós-pandemia. Alguns economistas e parlamentares defendem a retomada da política de austeridade, com os cortes de gastos sociais e redução do Estado de Bem-Estar Social, no pós-pandemia. Conforme apresentado anteriormente, essa lógica está explícita na mensagem do PLDO 2021 de retomada da austeridade para os anos de 2021 a 2023, tendo o Teto de Gastos como principal âncora fiscal.
Apesar da dificuldade de lidar com regras fiscais que se sobrepõem e impedem uma ação mais efetiva do Estado brasileiro, o governo federal mantém-se fiel à medida mais desastrosa para com os compromissos assumidos na Constituição de 1988. No documento "Austeridade e Retrocesso", discutimos os efeitos da EC 95/2016 em diversas áreas. Essa emenda leva à queda do gasto público em termos per capita e como parcela do PIB, o que irá prejudicar os investimentos públicos e a oferta de serviços públicos e atividades essenciais à população, como saúde, educação, cultura, produção de alimentos, segurança, dentre outros, aumentando a desigualdade no Brasil.
O projeto de retomada da política de austeridade não é apenas uma escolha de política econômica, mas especialmente de economia política. A austeridade é seletiva e o projeto de Estado mínimo é apenas mínimo no que diz respeito aos direitos sociais. Diante do colapso econômico em curso, aqueles que defendiam a austeridade e afirmavam que o Brasil estava quebrado exigiram a atuação rápida e vultuosa do Estado. Fica evidente, portanto, que não faltam recursos, mas sim vontade política de canalizá-los para as demandas concretas da sociedade. Apenas a reversão do desmonte neoliberal permitirá então que esses recursos não fiquem concentrados nas mãos de poucos e que possamos efetivamente construir “uma sociedade que funcione para todos”.
Esther Dweck é professora do IE-UFRJ (Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro), coordenadora do Grupo de Economia do Setor Público do IE-UFRJ e ex-Secretária de Orçamento Federal.
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